Ela não me conseguia ver porque estava completamente absorta na tarefa que tinha entre mãos. Cá fora, o bulício e a pressa de uma cidade que regressa a casa já noite densa impediam que mais gente a observasse. Fui eu, apenas eu, o seu voyeur anónimo, sentado que estava na fria e polida pedra da estação de correios. Cá fora o escuro, lá dentro a luz. Sozinha, ela abriu delicadamente a porta da vazia vitrina de exposição e ainda mais delicadamente compôs uma coreografia com envelopes de correio azul dispostos em leque. Recuou e observou a composição, e tal como eu, não gostou do que viu. Baralhou e tornou a dar, recompôs os envelopes, desta vez em escada. Melhorara. Ela também me pareceu contente. De súbito, tomada por um frenesim decorativo, repetiu gestos e formas nas outras prateleiras de vidro. Azuis, verdes e almofadados foram sistematicamente dispostos em várias formas, nuances de posição. Sem lhe ver o rosto, eu percebia que o prazer estava em alta. Quando se acabaram os espaços por preencher, recuou uma vez mais para apreciar o trabalho e bateu palmas de contentamento. Foi nesse momento que ela se sentiu observada e me encarou. Não fui suficientemente rápido a desviar o olhar, mas ainda a vi baixar os olhos, pegar na mala e no casaco e sair da estação agora de luz apagada. Quando rodava a chave na fechadura junto ao chão, sorriu-me envergonhada. "Ficaram bonitos", disse-lhe. Ela não respondeu, ainda corada.
09 outubro 2007
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17 comentários:
"A vida é feita de pequenos nadas..."
Pois.
É assim que se começa. Olhares furtivos, arrumação, decoração, CORREIO AZUL...ainda vai dar história.
Já agora, porque não voltar lá hoje (de preferência à mesma hora) com um ramo de rosas na mão?
Porque o meliante do outro post as roubou... às rosas, claro.
Pronto. Meliante isso...nada a fazer!
Já agora, porque não voltar lá hoje (de preferência à mesma hora) com um ramo de rosas na mão?
Nunca ofereci rosas a uma avó, mas quer-me parecer que não começarei hoje...
És um romântico!
Ai estes Escritores com "coisas" escondidas. Lá vou ter de reler o texto para refazer o "filme".
Pedro, é do safari ou não não há mesmo nenhuma referência à idade de tão distinta menina? é que eu á a estava a imaginar como uma daquelas musas inspiradoras que até a lavar a louça são sensuais. agora imagina a coreografar envelopes azuis!
382u
Foi exactamente o que me aconteceu.
Que corte do carago!
Eu não dei nenhuma referência de idade da senhora... As vossas mentes é que são demasiado férteis... ;)
...eu até estou a pensar fazer uma horta!
"...Cá fora o escuro..."
"...Ela não respondeu, ainda corada."
Explica lá como é que conseguiste ver a face corada da senhora. Então não estava escuro? ;)
Pode estar escuro e mesmo assim haver luz suficiente que permita ver o rubor das faces.
Amanhã vais lá descobrir o que ela é capaz de fazer com os selos..
Acho que se alguém me oferecesse um ramo de rosas colar-lhe-ia um bonito selo na testa e despacha-lo-ia em correio azul...
Despachavas lá agora...
Belive me...
"...Cá fora o escuro..."
"...Ela não respondeu, ainda corada."
Evidentemente, quanto mais corada melhor se vê de noite!
"O vosso mal é não teres lá em casa um pai que vos ponha essa rabo vermelho que se visse de noite", dizia um prof que eu tive quando se aborrecia com a turma.
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