09 outubro 2007

Manda-me uma carta em correio azul

Ela não me conseguia ver porque estava completamente absorta na tarefa que tinha entre mãos. Cá fora, o bulício e a pressa de uma cidade que regressa a casa já noite densa impediam que mais gente a observasse. Fui eu, apenas eu, o seu voyeur anónimo, sentado que estava na fria e polida pedra da estação de correios. Cá fora o escuro, lá dentro a luz. Sozinha, ela abriu delicadamente a porta da vazia vitrina de exposição e ainda mais delicadamente compôs uma coreografia com envelopes de correio azul dispostos em leque. Recuou e observou a composição, e tal como eu, não gostou do que viu. Baralhou e tornou a dar, recompôs os envelopes, desta vez em escada. Melhorara. Ela também me pareceu contente. De súbito, tomada por um frenesim decorativo, repetiu gestos e formas nas outras prateleiras de vidro. Azuis, verdes e almofadados foram sistematicamente dispostos em várias formas, nuances de posição. Sem lhe ver o rosto, eu percebia que o prazer estava em alta. Quando se acabaram os espaços por preencher, recuou uma vez mais para apreciar o trabalho e bateu palmas de contentamento. Foi nesse momento que ela se sentiu observada e me encarou. Não fui suficientemente rápido a desviar o olhar, mas ainda a vi baixar os olhos, pegar na mala e no casaco e sair da estação agora de luz apagada. Quando rodava a chave na fechadura junto ao chão, sorriu-me envergonhada. "Ficaram bonitos", disse-lhe. Ela não respondeu, ainda corada.

17 comentários:

Anónimo disse...

"A vida é feita de pequenos nadas..."

Anónimo disse...

Pois.
É assim que se começa. Olhares furtivos, arrumação, decoração, CORREIO AZUL...ainda vai dar história.
Já agora, porque não voltar lá hoje (de preferência à mesma hora) com um ramo de rosas na mão?

filipe m. disse...

Porque o meliante do outro post as roubou... às rosas, claro.

Anónimo disse...

Pronto. Meliante isso...nada a fazer!

Pedro Aniceto disse...

Já agora, porque não voltar lá hoje (de preferência à mesma hora) com um ramo de rosas na mão?

Nunca ofereci rosas a uma avó, mas quer-me parecer que não começarei hoje...

Nêspera disse...

És um romântico!

Anónimo disse...

Ai estes Escritores com "coisas" escondidas. Lá vou ter de reler o texto para refazer o "filme".

382 U disse...

Pedro, é do safari ou não não há mesmo nenhuma referência à idade de tão distinta menina? é que eu á a estava a imaginar como uma daquelas musas inspiradoras que até a lavar a louça são sensuais. agora imagina a coreografar envelopes azuis!

Anónimo disse...

382u
Foi exactamente o que me aconteceu.
Que corte do carago!

Pedro Aniceto disse...

Eu não dei nenhuma referência de idade da senhora... As vossas mentes é que são demasiado férteis... ;)

382 U disse...

...eu até estou a pensar fazer uma horta!

Anónimo disse...

"...Cá fora o escuro..."
"...Ela não respondeu, ainda corada."

Explica lá como é que conseguiste ver a face corada da senhora. Então não estava escuro? ;)

cristina amil disse...

Pode estar escuro e mesmo assim haver luz suficiente que permita ver o rubor das faces.

Amanhã vais lá descobrir o que ela é capaz de fazer com os selos..

cristina amil disse...

Acho que se alguém me oferecesse um ramo de rosas colar-lhe-ia um bonito selo na testa e despacha-lo-ia em correio azul...

Pedro Aniceto disse...

Despachavas lá agora...

cristina amil disse...

Belive me...

Anónimo disse...

"...Cá fora o escuro..."
"...Ela não respondeu, ainda corada."


Evidentemente, quanto mais corada melhor se vê de noite!
"O vosso mal é não teres lá em casa um pai que vos ponha essa rabo vermelho que se visse de noite", dizia um prof que eu tive quando se aborrecia com a turma.