Santo Deus e os que não sabem ler? Que espécie de pessoas se colocam em locais de atendimento público que quais autómatos, se limitam a despachar a "cassete", acrescentando um automático "O PRÓXIMO!" quando se lhe esgota a (pouca) paciência? Estive numa repartição pública do Centro Regional de Segurança Social para tratar de uns aspectos burocráticos de terceiros. A lenga lenga é a mesma, para novos e velhos. "Preenche, traz a certidão de óbito, fotocópia de cheque, cartão de pensionista, recibo da funerária e entrega", "O PRÓXIMO!". Os utentes são imensos, a espera é longa, o ambiente é sufocante. Vê-se-lhes no olhar vazio a sensação de perda. Transpiram desespero nalguns casos, desorientação profunda noutros. Mas o "animal" que lhes estende os papéis não quer (ou finge) não querer saber... Mais de metade dos requerentes não sabe ler. Percebe-se isso no momento em que as mãos a tremer seguram o formulário da Segurança Social. Eu sei ler e escrever e porventura não dei nunca a importância que esse facto me devia merecer. A fila prossegue a sua marcha lenta. Quem já foi atendido e parece ter percebido o objectivo a cumprir, abandona a sala. Os que ficam são, na sua maioria os que foram deserdados da hipótese do conhecimento. Agarram os papéis com um ar de abandono e de confusão. É verdade que as formalidades não são grandes, mas para quem não sabe escrever sequer o seu nome, a tarefa parece (e é) ciclópica. São seis os idosos que planam na sala sem saber o que fazer, a quem se dirigir. Parecem-me peixes fora de água. Um deles, um avô de olhar claro dirige-se a uma mesa onde uma funcionária matraqueia num Compaq com ar de ter sido estreado ontem. "Preenche, traz a fotocópia de uma cheque, traz a certidão de óbito, traz o cartão de pensionista, assina e entrega!". "Sabe o que é uma certidão de óbito?". Enfureço-me e sou propositadamente mal educado. "Não, caralho, não sabe assinar! Não vê um boi do papel que acaba de lhe por à frente! Para ele, as palavras assinar ou preencher a merda do papel é muito complicado, precisa de ajuda! Ajuda que lhe podia dar em vez de o ofender na sua dignidade, mandando-o preencher a folha". Saí da fila e pedi-lhes os papéis. Todos trazem um envelope com ar puído onde guardam a documentação. Todos têm tudo o que falta excepto a capacidade de saber escrever. Lentamente extraem dos envelopes, os documentos, os bilhetes de identidade, fotocópias disto e daquilo. Aqueles envelopes são o arquivo documental de uma vida inteira, têm escrituras, registos, cédulas profissionais, cheques enrolados em carteirinhas que já não vejo desde a minha infância. Têm tudo, até esferográficas, supremo luxo para quem não sabe escrever, ou se o faz, com enorme dificuldade. Alinho-os e peço-lhes os dados. Um deles chora apenas ao pronunciar o nome da falecida. Os dados são relativamente curtos. Poucos minutos são precisos para que os formulários fiquem em ordem. Só faltam as famigeradas fotocópias do cheque (esta operação é estúpida, o CRSS quer o NIB e tira-o do cheque. Alguém sabe a confusão que faz a um velho pedir-lhe uma cópia de um cheque? Alguém imagina a desconfiança natural que sente uma destas criaturas quando se lhe pede um cheque?). Chega o momento em que lhes peço para assinarem. Conseguem assinar? "Mal, mas consigo escrever o meu nome". Então vamos lá escrever aí o nome como está no BI. (Sinto-me um idiota quando olho para os Bilhetes de Identidade e percebo que nenhum deles conhece outra forma de assinar ou de escrever o nome diferente da forma como está no BI). É uma operação naturalmente demorada. Percebo a alegria nos olhos de um deles, o ar atinado, de língua de fora a batalhar com a grafia de Florindo Marques. Estende-me o papel, orgulhoso do acto. Reuno tudo e regresso à fila. Com a pressa esqueci-me de assinar o meu próprio papel, coisa que resolvo nas costas de um banco. A funcionária observa-me com olhos de carneiro mal morto e vai carimbando os pedidos, sem uma palavra, tão mecanicamente como quando exclama "O PRÓXIMO!". E pronto meus caros, está feito! Agora é esperar pelo vale postal ou pelo aviso do banco a dizer que já lá está o dinheiro. Agradecem-me, todos, desejando-me venturas e pagamentos extra terrenos. Excepto um, que quer saber onde moro. Para quê, pergunto. "Mando-lhe uma galinha para o almoço". Humedecem-se-me os olhos e sinto-me bem, leve e capaz de ficar ali a tarde toda. Não pela galinha, mas pelo prazer de servir.
12 dezembro 2007
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26 comentários:
Isto aconteceu realmente?
Eu não escrevo ficção, salvo quando faço forecasts a seis meses.
Sim e deram-me a galinha.
E era bem boa!
Canjinha. De arroz, 'tá claro!
Alimentaste o corpo e a alma. Grande dia não?
..............
Uma vénia. Pelo acto e pelo relato.
...duas vénias então, por ambas as razões.
Não sei se é a forma como escreveu o que eu também sinto se é a coisa em si; o certo é que me comoveu. Viveriamos num mundo melhor se soltassemos assim, desta forma tão simples, um pouco de nós para os outros.
Boas Festas Pedro!
Luísa Gonçalves
Galinha do campo, é outra coisa.
É um facto.
Mas por acaso não vou "à bola" com canja de arroz. A excepção será talvez a canja de pato, onde o arroz é cozido junto para depois ir ao forno ganhar cor e rigidez circundando o pato no meio da travessa, como a minha mãe costuma fazer. 5 asteriscos lol.
Gostei de ler a tua história, como tenho tido gosto em acompanhar o teu blog desde alguns meses. Têm sido vários episódios que tenho apreciado, e pela qualidade do que escreves, ainda que seja a nível pessoal, consegues passar um lado humano sentido e perspicaz ao teu blog. Não me surpreende portanto que o teu "cão com pulgas" esteja referenciado para o top dos blogs.
Sou leitor assíduo, comentador nem por isso, mas hoje não podia deixar de me juntar às vénias... :-)
..."Mas por acaso não vou "à bola" com canja de arroz."
Pouca gente vai à bola com canja de arroz. It's an injustice, it is...
Deixaste-me de lágrimas nos olhos, e não sou gajo de ser apanhado desprevenido! O que relataste desenterrou fortes recordações. Foi o que aconteceu à minha mãe aquando da morte do meu pai. Mal sabia assinar o nome, embora fosse uma devoradora de romances de bolso.
Abraço,
MB
"a canja de pato" ontem foi uma muito bem servida pelo guarda-redes turco ao Tarik que por sua vez a passou ao Lucho...disseram que estava muito boa.
Quem levou o arroz foi o guardião.
É bestial poder ter acesso a um blog como este. É como estar a ler um livro de crónicas e poder escrever nas margens sem o estragar (às vezes).
Quem sofre com isto são as editoras...por outro lado as árvores parecem mais felizes.
Parabéns pelo gesto e sobretudo pela coragem de agir!
Quanto à canjinha... eu teria feito fricassé... mas pronto.
:)
Isto faz lembrar o que se passou numa conservatória de registo predial com um grande amigo meu...
http://smallr.net/simplex
Chapeau
Importa-se que faça um link para o meu cantinho? Aqui para este texto que me fez chorar.
beijo
ps: Volto cá mais tarde p saber
Maria, link à vontade que eu é que agradeço.
"Quanto à canjinha... eu teria feito fricassé... mas pronto."
Ora nem mais.
Grande texto, grande experiência, grande homem...
Os meus pais trabalham num Centro de Segurança Social (não, não vou tentar resgatar a honra da funcionária da história hehehe) e recordo-me que muitos velhinhos iam lá a casa para os meus pais lhes tratarem dos papéis, as histórias eram bastante semelhantes...
É engraçado que costuma dizer-se "olha que aqui não é a segurança social!" Quando a pessoa que temos à frente precisa de algum tipo de ajuda que não se lhe pode dar...
Agora neste caso é a própria Segurança Social que parece impotente para dar qualquer tipo de apoio... a quem mais precisa dele, sendo ela própria a excluir socialmente os que ela própria tem como missão incluir!
Culpar os funcionários públicos é o mais fácil... mas sabendo nós que anda para aí uma "limpeza étnica" e cada vez são menos onde mais falta fazem, compreende-se que dada a quantidade de pessoas e dramas humanos que ali passam diariamente é difícil solidarizar-se servir melhor o cidadão...
O que mais me faz confusão na segurança social é mixórdia de situação que se "resolvem" aqui... Junta-se o pessoal das reformas e pensões com as licenças de paternidade, os subsídios de doença, os trabalhadores independentes, o pessoal do rendimento mínimo... e ainda os montes de gente que vão lá pedir um extracto de descontos que uma burocracia qualquer exigiu...é gente a mais para um só serviço...
Isto é de facto o hipermercado do serviço público!
Situação semelhante acontece em dias de eleições.
Vamos votar a Paranhos, numa escola que parece estar abandonada, e onde grande parte dos eleitores são idosos.
É impressionante a dificuldade que as pessoas têm, e mais impressionante, é não terem qualquer apoio.
São curiosas as diversas formas que utilizam para guardar os documentos e, quando oferecemos ajuda não os entregam. A desconfiança é quase sagrada.
Há sempre uma voz interior que me diz: bem-vinda à realidade! Já me deu vontade de ir ter com aqueles senhores que estão junto às mesas, em representação dos seus partidos, com ar grave e de estadistas, e dizer-lhes que são mais úteis se forem-lhes ajudar.
São anos e anos de atraso,mas essa é outra conversa.
É bestial poder ter acesso a um blog como este. É como estar a ler um livro de crónicas e poder escrever nas margens sem o estragar (às vezes).
Quem sofre com isto são as editoras...por outro lado as árvores parecem mais felizes.
Coisa bonita, José! Abraço
=)
Trabalho na SS há mais de trinta anos. Trinta e tal anos de atendimento ao público, tempo suficiente para conhecer muitas manhas e para cair em muitas ciladas. A mesma pessoa que “implora” para que lhe preencha o simples formulário (e que provoca visível irritação do imediato na mesma fila que só se insurge quando o beneficiado já deu à sola) é exactamente a mesmíssima que denuncia o tipo a quem pediu que lhe preenchesse o papel no exacto momento em que a informação (por ela dada) é tida como imprecisa ou incorrecta – defesa instintiva, diz-se. Coisas simples, como passar um histórico de salários (não demora mais que dois minutos) são suficientes para, no dia seguinte, ter lá o “presidente da junta de freguesia” entidade patronal da pessoa a quem foi passado o referido histórico, a pedir explicações e a exigir: “este caso vai até às últimas consequências” - (passou-se há dois meses com um colega meu que tem um processo disciplinar à perna).
Este mundo tem de tudo, meus caros. E na segurança social aparece de tudo: desde tipos embriagados a pedir o livro de reclamações e cujas garatujas têm de seguir, no mesmo dia, uma tramitação complicada (que dá um trabalhão, mas tem de ser); ao chico-espertismo, …. A propósito:agora, que os desempregados têm de apresentar-se quinzenalmente nos serviços da segurança social, seria interessante fazer um estudo que explicasse porque razão a grande maioria se apresenta à hora de abertura dos serviços (a olharem desesperadamente para os relógios) e à hora do almoço! Entre 75 a 80 por cento, sem exagero.
Nunca tive grandes chatices, mas as raras que tive prendem-se exactamente com coisas aparentemente sem importância, como preencher formulários recuar uma data num carimbo a um desgraçado que se esqueceu de trazer uma declaração e aparece esbaforido na manhã do dia seguinte….coisas aparentemente sem importância, mas que se revestem de enorme importância quando, lá de cima, os eclipsados resolvem chatear. E podem crer que a pessoa a quem se fez o “bem” está-se nas tintas. Por isso mesmo, do lado de fora as coisas são bem mais simples…e o gesto é comovente, isso é!
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