12 dezembro 2007

Como se lhes lessem as almas

Republicação de texto de Setembro 2003

Santo Deus e os que não sabem ler? Que espécie de pessoas se colocam em locais de atendimento público que quais autómatos, se limitam a despachar a "cassete", acrescentando um automático "O PRÓXIMO!" quando se lhe esgota a (pouca) paciência? Estive numa repartição pública do Centro Regional de Segurança Social para tratar de uns aspectos burocráticos de terceiros. A lenga lenga é a mesma, para novos e velhos. "Preenche, traz a certidão de óbito, fotocópia de cheque, cartão de pensionista, recibo da funerária e entrega", "O PRÓXIMO!". Os utentes são imensos, a espera é longa, o ambiente é sufocante. Vê-se-lhes no olhar vazio a sensação de perda. Transpiram desespero nalguns casos, desorientação profunda noutros. Mas o "animal" que lhes estende os papéis não quer (ou finge) não querer saber... Mais de metade dos requerentes não sabe ler. Percebe-se isso no momento em que as mãos a tremer seguram o formulário da Segurança Social. Eu sei ler e escrever e porventura não dei nunca a importância que esse facto me devia merecer. A fila prossegue a sua marcha lenta. Quem já foi atendido e parece ter percebido o objectivo a cumprir, abandona a sala. Os que ficam são, na sua maioria os que foram deserdados da hipótese do conhecimento. Agarram os papéis com um ar de abandono e de confusão. É verdade que as formalidades não são grandes, mas para quem não sabe escrever sequer o seu nome, a tarefa parece (e é) ciclópica. São seis os idosos que planam na sala sem saber o que fazer, a quem se dirigir. Parecem-me peixes fora de água. Um deles, um avô de olhar claro dirige-se a uma mesa onde uma funcionária matraqueia num Compaq com ar de ter sido estreado ontem. "Preenche, traz a fotocópia de uma cheque, traz a certidão de óbito, traz o cartão de pensionista, assina e entrega!". "Sabe o que é uma certidão de óbito?". Enfureço-me e sou propositadamente mal educado. "Não, caralho, não sabe assinar! Não vê um boi do papel que acaba de lhe por à frente! Para ele, as palavras assinar ou preencher a merda do papel é muito complicado, precisa de ajuda! Ajuda que lhe podia dar em vez de o ofender na sua dignidade, mandando-o preencher a folha". Saí da fila e pedi-lhes os papéis. Todos trazem um envelope com ar puído onde guardam a documentação. Todos têm tudo o que falta excepto a capacidade de saber escrever. Lentamente extraem dos envelopes, os documentos, os bilhetes de identidade, fotocópias disto e daquilo. Aqueles envelopes são o arquivo documental de uma vida inteira, têm escrituras, registos, cédulas profissionais, cheques enrolados em carteirinhas que já não vejo desde a minha infância. Têm tudo, até esferográficas, supremo luxo para quem não sabe escrever, ou se o faz, com enorme dificuldade. Alinho-os e peço-lhes os dados. Um deles chora apenas ao pronunciar o nome da falecida. Os dados são relativamente curtos. Poucos minutos são precisos para que os formulários fiquem em ordem. Só faltam as famigeradas fotocópias do cheque (esta operação é estúpida, o CRSS quer o NIB e tira-o do cheque. Alguém sabe a confusão que faz a um velho pedir-lhe uma cópia de um cheque? Alguém imagina a desconfiança natural que sente uma destas criaturas quando se lhe pede um cheque?). Chega o momento em que lhes peço para assinarem. Conseguem assinar? "Mal, mas consigo escrever o meu nome". Então vamos lá escrever aí o nome como está no BI. (Sinto-me um idiota quando olho para os Bilhetes de Identidade e percebo que nenhum deles conhece outra forma de assinar ou de escrever o nome diferente da forma como está no BI). É uma operação naturalmente demorada. Percebo a alegria nos olhos de um deles, o ar atinado, de língua de fora a batalhar com a grafia de Florindo Marques. Estende-me o papel, orgulhoso do acto. Reuno tudo e regresso à fila. Com a pressa esqueci-me de assinar o meu próprio papel, coisa que resolvo nas costas de um banco. A funcionária observa-me com olhos de carneiro mal morto e vai carimbando os pedidos, sem uma palavra, tão mecanicamente como quando exclama "O PRÓXIMO!". E pronto meus caros, está feito! Agora é esperar pelo vale postal ou pelo aviso do banco a dizer que já lá está o dinheiro. Agradecem-me, todos, desejando-me venturas e pagamentos extra terrenos. Excepto um, que quer saber onde moro. Para quê, pergunto. "Mando-lhe uma galinha para o almoço". Humedecem-se-me os olhos e sinto-me bem, leve e capaz de ficar ali a tarde toda. Não pela galinha, mas pelo prazer de servir.

26 comentários:

Anónimo disse...

Isto aconteceu realmente?

Pedro Aniceto disse...

Eu não escrevo ficção, salvo quando faço forecasts a seis meses.

Pedro Aniceto disse...

Sim e deram-me a galinha.

Pedro Aniceto disse...

E era bem boa!

Pedro Aniceto disse...

Canjinha. De arroz, 'tá claro!

cristina amil disse...

Alimentaste o corpo e a alma. Grande dia não?

Anónimo disse...

..............
Uma vénia. Pelo acto e pelo relato.

Anónimo disse...

...duas vénias então, por ambas as razões.
Não sei se é a forma como escreveu o que eu também sinto se é a coisa em si; o certo é que me comoveu. Viveriamos num mundo melhor se soltassemos assim, desta forma tão simples, um pouco de nós para os outros.
Boas Festas Pedro!
Luísa Gonçalves

Manuel Tavares disse...

Galinha do campo, é outra coisa.
É um facto.
Mas por acaso não vou "à bola" com canja de arroz. A excepção será talvez a canja de pato, onde o arroz é cozido junto para depois ir ao forno ganhar cor e rigidez circundando o pato no meio da travessa, como a minha mãe costuma fazer. 5 asteriscos lol.

Gostei de ler a tua história, como tenho tido gosto em acompanhar o teu blog desde alguns meses. Têm sido vários episódios que tenho apreciado, e pela qualidade do que escreves, ainda que seja a nível pessoal, consegues passar um lado humano sentido e perspicaz ao teu blog. Não me surpreende portanto que o teu "cão com pulgas" esteja referenciado para o top dos blogs.

Anónimo disse...

Sou leitor assíduo, comentador nem por isso, mas hoje não podia deixar de me juntar às vénias... :-)

Pedro Aniceto disse...

..."Mas por acaso não vou "à bola" com canja de arroz."

Pouca gente vai à bola com canja de arroz. It's an injustice, it is...

Anónimo disse...

Deixaste-me de lágrimas nos olhos, e não sou gajo de ser apanhado desprevenido! O que relataste desenterrou fortes recordações. Foi o que aconteceu à minha mãe aquando da morte do meu pai. Mal sabia assinar o nome, embora fosse uma devoradora de romances de bolso.
Abraço,
MB

Anónimo disse...

"a canja de pato" ontem foi uma muito bem servida pelo guarda-redes turco ao Tarik que por sua vez a passou ao Lucho...disseram que estava muito boa.
Quem levou o arroz foi o guardião.

Anónimo disse...

É bestial poder ter acesso a um blog como este. É como estar a ler um livro de crónicas e poder escrever nas margens sem o estragar (às vezes).
Quem sofre com isto são as editoras...por outro lado as árvores parecem mais felizes.

r. disse...

Parabéns pelo gesto e sobretudo pela coragem de agir!

Quanto à canjinha... eu teria feito fricassé... mas pronto.

:)

Paulo Moura disse...

Isto faz lembrar o que se passou numa conservatória de registo predial com um grande amigo meu...

http://smallr.net/simplex

Gato Lik disse...

Chapeau

Maria do Consultório disse...

Importa-se que faça um link para o meu cantinho? Aqui para este texto que me fez chorar.
beijo
ps: Volto cá mais tarde p saber

Pedro Aniceto disse...

Maria, link à vontade que eu é que agradeço.

filipe m. disse...

"Quanto à canjinha... eu teria feito fricassé... mas pronto."

Ora nem mais.

Anónimo disse...

Grande texto, grande experiência, grande homem...

Os meus pais trabalham num Centro de Segurança Social (não, não vou tentar resgatar a honra da funcionária da história hehehe) e recordo-me que muitos velhinhos iam lá a casa para os meus pais lhes tratarem dos papéis, as histórias eram bastante semelhantes...

Anónimo disse...

É engraçado que costuma dizer-se "olha que aqui não é a segurança social!" Quando a pessoa que temos à frente precisa de algum tipo de ajuda que não se lhe pode dar...
Agora neste caso é a própria Segurança Social que parece impotente para dar qualquer tipo de apoio... a quem mais precisa dele, sendo ela própria a excluir socialmente os que ela própria tem como missão incluir!
Culpar os funcionários públicos é o mais fácil... mas sabendo nós que anda para aí uma "limpeza étnica" e cada vez são menos onde mais falta fazem, compreende-se que dada a quantidade de pessoas e dramas humanos que ali passam diariamente é difícil solidarizar-se servir melhor o cidadão...
O que mais me faz confusão na segurança social é mixórdia de situação que se "resolvem" aqui... Junta-se o pessoal das reformas e pensões com as licenças de paternidade, os subsídios de doença, os trabalhadores independentes, o pessoal do rendimento mínimo... e ainda os montes de gente que vão lá pedir um extracto de descontos que uma burocracia qualquer exigiu...é gente a mais para um só serviço...
Isto é de facto o hipermercado do serviço público!

Anónimo disse...

Situação semelhante acontece em dias de eleições.
Vamos votar a Paranhos, numa escola que parece estar abandonada, e onde grande parte dos eleitores são idosos.
É impressionante a dificuldade que as pessoas têm, e mais impressionante, é não terem qualquer apoio.
São curiosas as diversas formas que utilizam para guardar os documentos e, quando oferecemos ajuda não os entregam. A desconfiança é quase sagrada.
Há sempre uma voz interior que me diz: bem-vinda à realidade! Já me deu vontade de ir ter com aqueles senhores que estão junto às mesas, em representação dos seus partidos, com ar grave e de estadistas, e dizer-lhes que são mais úteis se forem-lhes ajudar.
São anos e anos de atraso,mas essa é outra conversa.

Pedro Aniceto disse...

É bestial poder ter acesso a um blog como este. É como estar a ler um livro de crónicas e poder escrever nas margens sem o estragar (às vezes).
Quem sofre com isto são as editoras...por outro lado as árvores parecem mais felizes.

Coisa bonita, José! Abraço

Unknown disse...

=)

Anónimo disse...

Trabalho na SS há mais de trinta anos. Trinta e tal anos de atendimento ao público, tempo suficiente para conhecer muitas manhas e para cair em muitas ciladas. A mesma pessoa que “implora” para que lhe preencha o simples formulário (e que provoca visível irritação do imediato na mesma fila que só se insurge quando o beneficiado já deu à sola) é exactamente a mesmíssima que denuncia o tipo a quem pediu que lhe preenchesse o papel no exacto momento em que a informação (por ela dada) é tida como imprecisa ou incorrecta – defesa instintiva, diz-se. Coisas simples, como passar um histórico de salários (não demora mais que dois minutos) são suficientes para, no dia seguinte, ter lá o “presidente da junta de freguesia” entidade patronal da pessoa a quem foi passado o referido histórico, a pedir explicações e a exigir: “este caso vai até às últimas consequências” - (passou-se há dois meses com um colega meu que tem um processo disciplinar à perna).
Este mundo tem de tudo, meus caros. E na segurança social aparece de tudo: desde tipos embriagados a pedir o livro de reclamações e cujas garatujas têm de seguir, no mesmo dia, uma tramitação complicada (que dá um trabalhão, mas tem de ser); ao chico-espertismo, …. A propósito:agora, que os desempregados têm de apresentar-se quinzenalmente nos serviços da segurança social, seria interessante fazer um estudo que explicasse porque razão a grande maioria se apresenta à hora de abertura dos serviços (a olharem desesperadamente para os relógios) e à hora do almoço! Entre 75 a 80 por cento, sem exagero.
Nunca tive grandes chatices, mas as raras que tive prendem-se exactamente com coisas aparentemente sem importância, como preencher formulários recuar uma data num carimbo a um desgraçado que se esqueceu de trazer uma declaração e aparece esbaforido na manhã do dia seguinte….coisas aparentemente sem importância, mas que se revestem de enorme importância quando, lá de cima, os eclipsados resolvem chatear. E podem crer que a pessoa a quem se fez o “bem” está-se nas tintas. Por isso mesmo, do lado de fora as coisas são bem mais simples…e o gesto é comovente, isso é!