27 março 2008

Tibet (saudades minhas)? ;)

Tenho saudades de um bom texto, de prosa gorda e escorreita. Dos que deixam saudades parágrafo a parágrafo, daqueles que volvemos atrás para lhe chupar o sumo. Dos que nunca esquecemos. Às vezes penso que encontrei a ponta, o fio da inspiração mas puxa-se e o baraço é podre, parte-se, desfia-se, perde-se-me entre os dedos. Tenho puxado vários cordéis desses nos últimos dias e lá vem um de quando em vez que parece dar fio para toda a mecha, mas lá está, quebra-se-me a vontade. Entusiasmo-me de quando em vez com uma história. Como esta manhã em que dei por mim a ameaçar um homem. Como se fosse possível. Como se eu acreditasse em mim mesmo quando me escutei de voz alterada dizer a um pedaço de asno que insultava à porta do carro o seu próprio passageiro. "Meta-se imediatamente no carro e tenha vergonha!" disse-lhe o meu outro eu enquanto a outra metade observava no passeio e tomava notas mentais da situação surreal. Um velho e um novo, o novo aos gritos a dizer "Despacha-te meu cabrão!" enquanto o velho descia os poucos metros de calçada com o seu mundo só dele apoiado em três pontos. "Shhhh, Shhhh, Ploc" as chinelas a arrastarem-se a compasso entrecortado pelo som cavo da bengala. "Anda lá caralho, julgas que tenho o dia todo?", ele irado, de fora do carro de motor em funcionamento. Aquilo doeu-me como se fora pessoal, uma questiúncula entre mim e o novo. Abri-lhe os olhos, senti-o crescer e quase juro que nessa altura já os meus dois eus estavam no passeio a anotar a ocorrência. Doeu-me que todos os que passam naquele instante percebem que há duas almas que se desafiam com o olhar e que fingem não ver, não perceber, não sentir. Quase que saltitam a desviar-se da raiva que continua a crescer-lhes nas faces. "Oh que caralho, tens alguma coisa a ver com isto?" o velho a fazer-me sinais que me afastasse, que não ligasse, que saísse dali que lhe pouparia a vergonha com que lentamente se vestia. O novo deu a volta ao automóvel e atirou-se literalmente para o assento, o velho ao meu lado a tentar segurar a bengala debaixo de um braço, a lutar desajeitadamente com a alavanca da fechadura. Abri-lhe a porta, sorri, ele não disse uma única palavra, nem precisou, levou a mão à pala do boné como fazem quase todos os grandes sábios e eu percebi a mensagem. Depois foi um ronco de motor, a silhueta do velho a ondular espalmando-se contra as costas do banco. Os meus eus a fundirem-se num só, o sol a aquecer-me, o mundo a continuar a rodar.

8 comentários:

botinhas disse...

Esse nem às aulas de francês deve ter ido! :s

Anónimo disse...

Pois... fala-se tanto, e bem, nos maus tratos às crianças, às mulheres, e os idosos, só quando há um lar com condições sub-humanas é que abrem telejornais... Bom texto, e boa malha era o que esse atrasado merecia.

Anónimo disse...

Pedro...

Excelente a forma como o descreves! Uma boa prosa para tornar a ler!

Unknown disse...

Pedro, só uma nota: Já tem o passado no "did", logo deve ter "miss" e não "missed". Não é para chatear. Pode apagar esta mensagem.
Bom post btw :)

m.camilo disse...

Ora aqui está mais uma excelente "Crónica Sobre o Verdadeiro Filho da P*ta".

r. disse...

Espero que lho lembrem bem quando e "SE" o asno chegar a velho.

ana v. disse...

Óptima crónica. Parabéns. Também já tinha saudades de um dos seus textos mais longos.
Vou levá-lo para o Porta do Vento, espero que não se importe.
Ana

Pedro Aniceto disse...

Esteja à vontade, AV eu é que agradeço a preferência.