Durante muitos anos ignorei o meu próprio fim físico. Era algo arrepiante, sinistro e de muito mau gosto ter-se uma jovem idade e pensar no destino final. Ninguém gosta de enfrentar a sua própria finitude, o fim, o apagão. Reparem como ainda hoje tenho dificuldades em pronunciar "morte", a palavra maldita, a M word na qual evitei meditar durante anos. Depois a idade vai-se acumulando e inevitavelmente lembramo-nos dela de quando em vez.
Quando ultrapassei incólume a fase do exagero físico, da exposição ao perigo consequente, comecei gradualmente a tomar consciência de que um dia se me acabaria a mecha, o gás, o combustível e todas essas metáforas que simbolizam a existência. Passei a guiar com mais cuidado. Durante anos não liguei nenhuma ao colesterol, mas lembro-me de pensar que a guiar como guiava, era absolutamente desnecessário preocupar-me com o colesterol.
Passei a querer deixar de fumar, batalha que ainda não consegui começar a ganhar. Cheguei à fase em que o tempo que julgamos ter pela frente parece menor do que aquele que já passou. Quando em menino ainda a morte se me foi configurando como algo a que ninguém não poderá nunca escapar (ocorre-me um pensamento lateral sobre Lili Caneças e Betty Grafstein...) fui interiorizando as minhas escolhas. A ideia de enterramento dos corpos nunca me agradou, nem sequer sei explicar porquê. Vi demasiados funerais que me impressionaram, não pelas pessoas (também pelas pessoas) mas mais pelo método, a forma, os rituais associados.
O luto, detesto o luto e nem me vou alongar sobre as razões. Lembro-me de que há anos, num funeral de um colega nos termos auto-censurado por, à porta do velório estarmos em plena confraternização, recordando e galhofando sobre coisas passadas e vividas por todos nós até pelo morto (e principalmente pelo morto). Tivemos, nós os vivos, uma discussão épica (e quando somos novos todas as grandes discussões são épicas) sobre a existência do luto e da celebração da dor enquanto ritual de quem cá fica. Prometi a mim mesmo, silenciosamente, que um dia haveria de manifestar o desejo de que quando o meu dia chegasse, o tal em que for necessário reunirem-se os amigos para um momento mais triste, que se riam, que contem as últimas chalaças a quem ainda as não sabe ( e no meu grupo de amigos há tipos a quem posso estar um mês a contar anedotas porque eles nunca se lembram delas mesmo que lhas tenha contado ontem...), que bebam uns copos e que se divirtam.
Nada de choros! Aqueles que ainda fumam têm desde já autorização para se encostar na ombreira da porta e que recordem aí os pedacinhos das respectivas vidas em que nos cruzámos. Vale tudo, mesmo tudo. As pequenas glórias (as Marias e as Helenas essas é melhor não, tá bem?) as grandes humilhações, tudo, mesmo tudo o que nos fizer ter saudades. Há uns anos oficializei o desejo. Nada de lamúrias. Ao morto não fará a mínima diferença e com o meu lendário hábito de me distrair com as horas, pode ainda dar-se o caso de antes de quinar ainda aparecer para beber uma imperial com os presentes.
Mas manteve-se a questão da disposição física do defunto. Nunca achei grande encanto ao enterramento, a decomposição física assusta-me. Durante anos a cremação era algo que não era visto com bons olhos e nunca sequer a considerei como hipótese. Porque durante muitos anos a legislação portuguesa impedia que as cinzas saissem do próprio cemitério onde ficavam depositadas numa espécie de jardim das almas, horto dos que agora são apenas pó. Eu percebo que à família façam falta três metros quadrados de memória encimados por uma pedra que há-de mais tarde ou mais tarde (não me enganei) cobrir-se de musgo e desaparecer alguns anos depois, lá atrás, num canto do cemitério a servir de cama aos lagartos e às aranhas.
Eu sei-o, vi demasiadas vezes os trabalhadores destas coisas a reciclar lápides a martelo e a varrer para debaixo da cortina do tempo as marcas de quem foi votado ao abandono. A não ser claro está que sejas de facto um tipo fora de série e ainda assim não era o primeiro a ser esquecido. A ideia de ficar para toda a eternidade (o que é tempo como o caraças!) enfiado num pote apertado é um nadinha claustrofóbica e entediante, pelo que nenhuma das hipóteses me tenha agradado de sobremaneira.
Até hoje! Hoje, num desses jornais gratuitos que enxameiam Lisboa, vi um texto a anunciar uma nova forma funerária de dar seguimento a uma cremação. As cinzas do defunto são embaladas num cilindro de cartão biodegradável e nos despojos são misturadas sementes de pinheiro. A família e os amigos podem assim escolher um local agradável (ou um local foleiro se o gajo tiver sido um grande sacana...) e plantar o cilindro do qual as sementes, provavelmente, brotarão para dar vida a uma árvore.
Agrada-me bastante mais renascer como árvore, é um sentimento de maior utilidade e paz. Agrada-me porque é poético à sua maneira. A mim arranjem-me um cantinho soalheiro de preferência com vistas largas, não sou esquisito. Mesmo que de quando em vez venha um tipo gravar a canivete um "João loves Maria" ou um cão vier interesseiramente cheirar-me a base e depois como quem quer evidentemente a coisa, alçar a perna de seguida. Não é nada que não me tenha acontecido já.
Quando ultrapassei incólume a fase do exagero físico, da exposição ao perigo consequente, comecei gradualmente a tomar consciência de que um dia se me acabaria a mecha, o gás, o combustível e todas essas metáforas que simbolizam a existência. Passei a guiar com mais cuidado. Durante anos não liguei nenhuma ao colesterol, mas lembro-me de pensar que a guiar como guiava, era absolutamente desnecessário preocupar-me com o colesterol.
Passei a querer deixar de fumar, batalha que ainda não consegui começar a ganhar. Cheguei à fase em que o tempo que julgamos ter pela frente parece menor do que aquele que já passou. Quando em menino ainda a morte se me foi configurando como algo a que ninguém não poderá nunca escapar (ocorre-me um pensamento lateral sobre Lili Caneças e Betty Grafstein...) fui interiorizando as minhas escolhas. A ideia de enterramento dos corpos nunca me agradou, nem sequer sei explicar porquê. Vi demasiados funerais que me impressionaram, não pelas pessoas (também pelas pessoas) mas mais pelo método, a forma, os rituais associados.
O luto, detesto o luto e nem me vou alongar sobre as razões. Lembro-me de que há anos, num funeral de um colega nos termos auto-censurado por, à porta do velório estarmos em plena confraternização, recordando e galhofando sobre coisas passadas e vividas por todos nós até pelo morto (e principalmente pelo morto). Tivemos, nós os vivos, uma discussão épica (e quando somos novos todas as grandes discussões são épicas) sobre a existência do luto e da celebração da dor enquanto ritual de quem cá fica. Prometi a mim mesmo, silenciosamente, que um dia haveria de manifestar o desejo de que quando o meu dia chegasse, o tal em que for necessário reunirem-se os amigos para um momento mais triste, que se riam, que contem as últimas chalaças a quem ainda as não sabe ( e no meu grupo de amigos há tipos a quem posso estar um mês a contar anedotas porque eles nunca se lembram delas mesmo que lhas tenha contado ontem...), que bebam uns copos e que se divirtam.
Nada de choros! Aqueles que ainda fumam têm desde já autorização para se encostar na ombreira da porta e que recordem aí os pedacinhos das respectivas vidas em que nos cruzámos. Vale tudo, mesmo tudo. As pequenas glórias (as Marias e as Helenas essas é melhor não, tá bem?) as grandes humilhações, tudo, mesmo tudo o que nos fizer ter saudades. Há uns anos oficializei o desejo. Nada de lamúrias. Ao morto não fará a mínima diferença e com o meu lendário hábito de me distrair com as horas, pode ainda dar-se o caso de antes de quinar ainda aparecer para beber uma imperial com os presentes.
Mas manteve-se a questão da disposição física do defunto. Nunca achei grande encanto ao enterramento, a decomposição física assusta-me. Durante anos a cremação era algo que não era visto com bons olhos e nunca sequer a considerei como hipótese. Porque durante muitos anos a legislação portuguesa impedia que as cinzas saissem do próprio cemitério onde ficavam depositadas numa espécie de jardim das almas, horto dos que agora são apenas pó. Eu percebo que à família façam falta três metros quadrados de memória encimados por uma pedra que há-de mais tarde ou mais tarde (não me enganei) cobrir-se de musgo e desaparecer alguns anos depois, lá atrás, num canto do cemitério a servir de cama aos lagartos e às aranhas.
Eu sei-o, vi demasiadas vezes os trabalhadores destas coisas a reciclar lápides a martelo e a varrer para debaixo da cortina do tempo as marcas de quem foi votado ao abandono. A não ser claro está que sejas de facto um tipo fora de série e ainda assim não era o primeiro a ser esquecido. A ideia de ficar para toda a eternidade (o que é tempo como o caraças!) enfiado num pote apertado é um nadinha claustrofóbica e entediante, pelo que nenhuma das hipóteses me tenha agradado de sobremaneira.
Até hoje! Hoje, num desses jornais gratuitos que enxameiam Lisboa, vi um texto a anunciar uma nova forma funerária de dar seguimento a uma cremação. As cinzas do defunto são embaladas num cilindro de cartão biodegradável e nos despojos são misturadas sementes de pinheiro. A família e os amigos podem assim escolher um local agradável (ou um local foleiro se o gajo tiver sido um grande sacana...) e plantar o cilindro do qual as sementes, provavelmente, brotarão para dar vida a uma árvore.
Agrada-me bastante mais renascer como árvore, é um sentimento de maior utilidade e paz. Agrada-me porque é poético à sua maneira. A mim arranjem-me um cantinho soalheiro de preferência com vistas largas, não sou esquisito. Mesmo que de quando em vez venha um tipo gravar a canivete um "João loves Maria" ou um cão vier interesseiramente cheirar-me a base e depois como quem quer evidentemente a coisa, alçar a perna de seguida. Não é nada que não me tenha acontecido já.
13 comentários:
É uma bela ideia.
No que me diz respeito, com a minha natural falta de jeito para tudo o que tenha a ver com o Reino Plantae, o mais provável seria o destino fazer juz às cinzas e que nunca nascesse o pinheiro :-)
E já agora, se me é permitido, belo post.
Bravo, belo post. No entanto, no teu caso, seria melhor uma macieira...
Gostei muito do texto.
É só com pinheiros ou há outras "raças"?
Considero a ideia excelente.
Só falta vir com a pá e enxada. Sim, que mesmo depois de morto se tem de dar trabalho aos desgraçados que por cá ficam.
Há algum tempo que estou atenta às suas refelexões, o que me divertem imenso.
Esta então, está muito boa!
Gostei do texto, muito bem escrito e a parte cão. :)
Paula Coelho
A parte do Pinheiro, se for bravo, só me desagrada por causa do nemátode. Quanto ao resto, a ideia parece-me excelente. A mim não me incomodaria nada ser reaproveitada para as faculdades de medicina que têm falta de objectos de estudo...
Gostei imenso do texto, Pedro.
Nesta minha fase da vida, este texto foi de uma enorme coincidência.
Revejo-me totalmente nesse sentimento de, enquanto novo, não querer pensar nisso. Com o passar da idade, o colesterol, os diabetes e com outras coisas que vão surgindo, temos mesmo que pensar em como vamos contribuir para o planeta.
To madalena
Pinheiros para estudo na faculdade de medicina?
Ou seria cinza para ser lá estudada?
Eu cá por mim quando morrer podem fazer o que quiserem, quero lá saber, o mais certo é que, detestando funerais, não vá ao meu.
De facto fui pouco clara...teria de ser em alternativa à incineração
:-)
É só com pinheiros ou há outras "raças"?
É uma boa pergunta Kincas mas não sei. Admito que seja só pinheiros. À maioria das pessoas deve irritar a ideia que, depois de teres sido comido em vida, ainda te venham comer depois de morto...
só o texto já quase convence a "olha, vou já fazer isto amanhã!"...
fantástico!
Não podia concordar mais com a primeira parte do post... deliciada por tomar conhecimento da segunda parte: espero vir a transformar-me num belo pinheiro!
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