24 dezembro 2008

A manhã de todos os Natais

Sempre me impressionaram as bonecas que abriam e fechavam os olhos. Sim, dessas, não das outras que só me impressionaram bem mais tarde. Lembro-me delas, das primeiras, que as minhas irmãs recebiam em contraponto aos meus cowboys de plástico e cinturões com coldres e pistolas de fulminante cujos rolos nunca duravam até Fevereiro por culpa das guerras que eu municiava nas escadas do prédio onde morava. Eram guerras solitárias, não havia mais rapazes no prédio e eu matava sombras e tapetes de porta, candeeiros de tecto e árvores da borracha que se davam bem nos patamares dos últimos andares por debaixo da clarabóia. Pam-pam-pam era matar a torto e a direito, até se esgotarem os fulminantes ou a paciência da minha mãe ou dos vizinhos. Mas volto onde estava, às bonecas de sobrancelhas espessas e olhar de vidro, cujas pálpebras se fechavam quando em posição horizontal. Impressionava-me o gesto técnico, quase perfeito. Não entendia como é que aquilo era possível. Os meus cowboys e guerreiros Navajo, Soshosne ou Pés Negros nunca fechavam os olhos, nem mesmo quando morriam de algum tiro mais certeiro. Mas esta inquietação do desconhecido não iria durar muito, nunca durava muito, ainda hoje sou por vezes tomado pelo frémito da descoberta e aí vou, à desfilada, em busca do universal conhecimento. Sei que preparei o crime com cuidada premeditação. Uma faca afiada, uma cabeça de boneca que por lá rebolava descuidada. O crime não compensou. Eram apenas dois pesos num balancé de arame, emoção que não compensou a cabeça de borracha, de olhos vazados, ali desfigurada. Ninguém deu pelo assassinato. A cabeça enfiei-a no lixo depois da descoberta e nunca mais a vi, pelo menos fisicamehte porque em sonhos ela aparece-me muitas vezes.

1 comentário:

Pantapuff disse...

passei por aqui para te desejar um feliz natal e a continuaçao de bons posts no próximo ano.
beijos