01 janeiro 2010

Fria. Sem gás

São quase três da manhã e eu, ajuizadamente, parei de beber há quase uma hora. Porque já lá vai o tempo das intoxicações alcoólicas tendentes a arruinar-me o primeiro dia do ano, melhor dizendo da primeira tarde do ano, sendo rara a ocasião em que levantava a cabeça da almofada antes das duas da tarde. Bons tempos, já devidamente arrumados e catalogados nas gavetas da memória. Amanhã segue sendo um dia como os outros, má sorte ter sido o primeiro, no beber e no estragar o mal está em começar. Lúcido e quase totalmente sóbrio decido levar o cachorro para a primeira volta higiénica do dia, assim como assim ambos precisamos do ar fresco, um mais do que o outro e não necessariamente por esta ordem. Ao fundo da rua inspiro profundamente, o ar frio devolve-me à realidade, ameniza outras influências e é então que me apercebo, melhor dizendo, escuto algo de anormal. Apuro os sentidos, prendo à trela o cão que foi o primeiro a manifestar-se rosnando baixinho em pré-aviso. Tranquilizo-o e tento perceber o enquadramento. Há um vulto a trinta de metros de mim que tenta estroncar um portão. Reavalio a situação. Tenho o cão, um telefone e pouca vontade de intervir. Sucedem-se os golpes no metal da estrutura e pergunto-me se na rua estará tudo morto ou inconsciente para que ninguém assome a uma janela ou venha ver o que se passa. Na minha apreciação cabem vários cenários, um deles a possibilidade de toda a vizinhança estar mais etilizada do que eu, o que não sendo difícil não é de todo impossível. Vejo mal no escuro, desloco-me pela sombra, cão de trela aperreada e tento aproximar-me. Quem quer que seja não dá por mim, há vento e o barulho que o próprio faz nos golpes no portão há-de camuflar-me o próprio ruído dos passos. A pouco menos de dez metros, confundo-me. O cão agita-se uma vez mais e procuro cobertura na esquina da rua. Não quero acreditar no que vejo, basta-me o que ouço, há um cão gigante de peluche a tentar abrir pela força um portão de ferro.

Vou repetir: Há um cão gigante de peluche a tentar abrir pela força um portão de ferro. Reorganizo a mente. Hesito, e hesito é uma palavra que não deixa espaço a qualquer dúvida, hesito em pegar no telefone, mas há ali um momento de antecipação do ridículo que será dizer a alguém a frase: "Há um gigantesco cão de peluche a tentar arrombar um portão ao fundo da minha rua" principalmente se a frase for dita a um agente de autoridade às três da manhã do primeiro dia do ano. Devem ser frases banais as que eles ouvem neste tipo de noites. Quase consigo imaginar uma resposta do género: "Muito bem, vamos já enviar uma patrulha de elefantes cor de rosa, capitaneados pelo sapo Cocas!". A história policial portuguesa também é feita destes momentos, mas decididamente não me apetece entrar em qualquer capítulo deste romance e muito menos ser notícia de capa de jornal de uma das manhãs seguintes.

Retiro-me, Retiro-me de honra ferida e mente baralhada. O meu próprio leitor desconfiará por ora do rigor da minha análise sobre a quantidade de bebida ingerida e será a minha palavra contra a de quem decida julgar-me. As únicas coisas que posso adiantar em minha defesa são as que se seguem. Nomeadamente esta e esta. E antes de terminar o que tenho para vos dizer queria apenas acrescentar que ao sair de casa tinha metido no bolso do casaco uma garrafa de água. Fria. Sem gás.

11 comentários:

Ricardo Antunes disse...

São 12:20 do dia 01.01.10 ...

Já foste tirar o assalto canino a limpo?

Não podes deixar assim a malta toda pendurada...

Dores disse...

Nova versão do Corfadário. Mais fofinha

Anónimo disse...

Este post está em destaque na Homepage do SAPO, tab Radar.

Pedro Aniceto disse...

Obrigado Jonas!

O Gato Preto disse...

Quando enveredar pela vida do crime já tenho método de actuação, realmente deve funcionar.
Um excelente 2010, com menos alucinações para ti e para o teu iPhone...
Gato.

Jorge disse...

Eu acho que era o Meia Orelha a tentar abrir o portão da horta.

pin-a-cloth disse...

A essa hora já eu dormia, mas já tenho planos para a passagem d'ano 2010/2011.

Ir até tua casa, onde só estas coisas acontecem! :)

Beijinhos e um bom ano

LSDee disse...

Serei a unica a achar que o portão era suficientemente baixo para o cão saltar em vez de fazer um escarcéu a arranhar a entrada?

Pedro Aniceto disse...

Não se vê, mas tem uns araminhos farpados... ;)

kincas disse...

Mas dá para ver as "pernas" extra do peluche.

A.B. disse...

Já foi há uns anitos, mas lembro-me de ser uma noite calma aqui na cidade, duas da manhã, Verão, e ao descer uma travessa daquelas todas aos esses deparei com um enorme guarda-fato no meio da rua. Não um destroço de guarda-fato, mas uma bela peça da capital do móvel, novinho. Os miolos demoraram tanto tempo a processar a informação que ia atropelando a coisa. Afinal havia uma explicação lógica - um casal estava a mudar-se de noite para não interromper muito o trânsito, e para indicar que a rua estava impedida puseram o guarda-fato a sinalizar.