14 janeiro 2013

Memórias da bola

Pedem-me, em cima da hora, um texto sobre futebol. "Para ontem". Impossível que a agenda não perdoa. Pergunto se posso usar material já publicado. Lá terá de ser. E foi. Desenterro das poeiras deste blog a história da meia de Toni. António Oliveira, a quem ainda vi jogar alguns anos e de cuja meia cheguei a ser dono.


"Não posso precisar o ano, finais dos anos setenta. Eu, ali, nas bancadas do velho Estádio da Luz a sofrer e a torcer pelo nosso Glorioso debaixo de um sol inclemente. Era dia de jogo de título, em casa contra o Vitória de Setúbal, os dois pontos davam e sobravam para garantir o Campeonato, coisa que estava a minutos de acontecer. As bancadas em glória e júbilo a uma voz que recordarei enquanto viva e mesmo depois de morto não posso garantir que as esqueça, oitenta mil em uníssono "BEN-FI-CA, BEN-FI-CA" compassadas com as épicas patadas no cimento das arquibancadas, era o Inferno da Luz, aquilo era arrepiante, vinha lá do fundo do ser e marcava-nos a todos, arregimentando a erecção de todos os pelos, mesmo aqueles que no meu caso ainda estivessem por nascer e haveria de se provar mais tarde que assim era por força da penugem pouco mais que imberbe que tardava em fazer-se anunciar. Há num sector quem derrube a rede da vedação, ali estou eu, hooligan à espera de acontecer, a pensar para com os meus botões "Vou lá para dentro? Não vou?". O tanas que não vou, esguio e magro passo pelos intervalos da turba e ali estou eu no momento seguinte em cima do relvado, o mágico tapete sagrado que o comum dos mortais encarnados de alma e muito mais de coração não ousava sequer pensar vir a pisar. 

Ali estou eu, eu e mais uns milhares, comprimindo-se na linha lateral à espera do apito final, uma imensa mole nervosa a pensar em filar um jogador, capturar um troféu, um símbolo, qualquer coisa que provasse a quem me quisesse ouvir "Eu estive lá, ora babem-se!!". À medida que os minutos iam escorrendo dos velhos relógios de ponteiros brancos dos velhos marcadores do estádio, a multidão ia-se chegando mais um pouco, lembro-me de ter sido empurrado para lá da linha lateral e ter ali, à mão de semear, os meus heróis, era só esticar um braço e tocar neles. Ouviu-se um apito estridente, deu-se o estampido, toda a gente corre para agarrar não se sabe bem quem, eu tinha ali bem perto o Toni, o António da Conceição, espera aí que já te agarro, eu mais uma dúzia despimo-lo num ápice, filei-lhe uma meia, não houve tempo nem cabedal para mais, ele debatia-se para se tentar livrar daqueles abraços titânicos e foi mesmo debaixo dos meus braços que ele gritou, berrou mais apropriado seria dizer: "O JOGO AINDA NÃO ACABOU, CARALHO!", coisa que me deixou em estado de choque, porque não é todos os dias que vemos um Deus a blasfemar, aprendiz de hooligan, e ali estou eu chocado e quase envergonhado pela minha precoce invasão de campo (tinha sido apenas assinalada uma falta...), sem saber o que fazer perante aquela situação estranha, e lembro-me do inacreditável, era a única coisa que poderia fazer para emendar o erro estúpido, estendi a mão ao Toni, devolvendo-lhe a meia, acto espúrio e irreflectido, não pela devolução, não por mais nada, mas sim porque quando estiquei o braço tentando ingenuamente reparar o meu erro, nesse preciso momento um galfarro gordo e suado ma roubou da mão, a meia encarnada suja e suada, saque de cuja glória só pudera ser corsário durante uma fracção temporal."

6 comentários:

Patricia Lousinha disse...

:)

Luís Maia disse...

Confirmo inteiramente a quem não acreditar a expressão utilizada

esguio e magro passo pelos intervalos da turba

Hugo disse...

Estive a percorrer o historial e é impossível ter sido nos anos 70. Nos anos em que o Benfica foi campeão nessa década, nunca jogou com o V.Setúbal nas últimas jornadas. O mais certo é ter sido na época 80/81, em que o Benfica foi campeão depois de ter espetado 5-1 ao Vitória de Setúbal na penúltima jornada, na Luz. Viria a perder o último jogo em Espinho por 2-0, mas já nada podia levar o título para longe.

Pedro Aniceto disse...

Confirma lá se esse não foi o jogo em que houve uma violentíssima carga policial em pleno relvado. És capaz de ter razão. Abraço

Pedro Aniceto disse...

Tempos esbeltos, meu caro Maia, tempos esbeltos.

Mg disse...

:)
Benfica! Sempre!