A fila de utentes da consulta externa da Maternidade Alfredo da Costa serpenteia pelo passeio, escudando-se os muitos enfileirados do vento gélido nos obstáculos que a autarquia semeeou providencialmente na calçada. Escolho uma máquina de bilhetes de parquímetro e tento esconder as orelhas das setas geladas com que o vento me presenteia. Não é fácil ser-se poético às sete e meia da manhã, mas preferi arrostar eu com o gelo, marcando a vez por terceiro. Já sou um habitué deste ritual, já reconheço algum do pessoal administrativo que, à semelhança de alguém que se veja obrigado a trabalhar às oito da matina, não vem com cara de muitos amigos. É a vidinha. Quando a fila se mexe é sinal de que o trinco da velha porta da admissão de doentes se mexeu também, num som sádico como quem quer dizer "esperem lá que isto foi só o trinco, estamos aqui estamos abertos" ao contrário dos rostos circunspectos de quem pensa "estamos aqui, estamos bem lixados". Quando entro no conforto da climatização do hall, tenho de esperar a minha vez para ser presenteado com algo que deveras me intriga. O funcionário da empresa de segurança, pessoa com quem troco literatura diversa ao longo das horas de espera (toma lá A Bola, dá-me cá o Record, obrigadinho a Hola não leio...) estica-me o sacramental crachat de plástico amarrotado, um singelo 33 de que já fui portador em muitas outras anteriores ocasiões. Já o recebi tantas vezes que já lhes perdi a conta, mas este dístico específico intriga-me. Não é um crachat de visitante, não tem nenhuma identificação da instituição, nenhum número de série, nada que o distinga de uma rifa, tirando é claro a mola de o prender na roupa. Não dei nenhum documento de identificação Nunca o usei ao peito, vai por norma para dentro do bolso e só me lembro dele quando me sento pesadamente num dos bancos da sala de espera e a mola me pica alguma parte mais sensível. De outras vezes perguntei-me sobre o seu uso. Nunca tive resposta, mas espantoso seria se a tivesse, quanto mais não fosse porque daria comigo a falar sozinho e isso toda a gente sabe, significa que estamos no fim do mês ou a precisar de falar com o psicólogo. Tenho perguntado em todos os balcões de consulta, ninguém mo pede, é uma pena, um plástico tão catita sem qualquer uso ou préstimo. Mas hoje não me contive. Não era a primeira vez que o levava para casa, não era a primeira vez que ao regressar aqui devolveria um e receberia outro. Hoje não me esquecerei de o devolver, mas tenho perguntas para fazer. E foi já de braço esticado com o 33 entre os dedos da mão direita que interroguei o funcionário da segurança. Afinal, para que serve este número? Ninguém o pede, ninguém o usa. Está a escapar-me alguma coisa?. "Não sei, a minha tarefa é distribuir um a cada pessoa que entra, pouca gente os devolve, daqui por um mês ou fazem mais ou deixo de ter plásticos para distribuir. Eu também acho isto um bocado estúpido, mas a Administração é que manda". O sol entra agora a jorros pelo átrio e uma gargalhada infantil chega-me aos ouvidos. Nem tento localizar-lhe a origem, é com toda a certeza Deus a rir-se das imperfeições da sua obra.
02 janeiro 2006
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2 comentários:
Há coisas neste país que não são para entender. É uma obstinação por burocracia, inutil e desnecessária e que só atrasa a nossa vida e a o país!
C’est très bon monsieur, dommage que le sujet ne soit abordé en profondeur mais, je peux comprendre ce choix.
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