Apresento-vos o Brocas e gostaria, deveras, que conhecessem bem. Alma e cérebro de criança, aprisionados ambos num corpo de vinte e seis anos de homem feito. Feito por vezes com a brutalidade boçal dos simples mas privado da maldade dos que se dizem evoluídos. De inteligência limitada, diria até marcada a espaços por um relativo atraso de desenvolvimento mental é incapaz de uma conversa que não termine invariavelmente com os olhos aparafusados no chão, por vergonha e derrota antecipada, estigmatizada pelo próprio com um sorriso de auto compaixão. O Brocas , atrevo-me a dizê-lo, só não é um indigente porque o patrão se apiedou dele e o conserva no rol de pagamentos mensais, a troco de alguma serventia, seja de pedreiro, trolha, moço de recados, pau para toda a obra desde que simples e de clara percepção. Digo piedade e sei do que falo pois são lendários os erros e enganos da criatura, que acabam por requerer a intervenção de colegas e clientes, bastas vezes consumindo tempo e dinheiro para salvar a pele do Brocas que consegue ainda assim observar os efeitos do maior dos seus disparates com um sorriso na face e os ombros encolhidos, a perguntar o que diabo aconteceu e porque é que estão todos tão nervosos...
Pois a história que vos conto passou-se nos idos do século passado quando se terminavam apressadamente as obras do Centro Cultural de Belém. Atrasados, para não variar nas lusas empreitadas, os acabamentos do grande auditório, obra imensa da qual me orgulho também de ter participado ainda que na rectaguarda.
Quando entro na sala para conferir do ponto de situação, vagueio entre montanhas de desperdício do forro acústico espalhadas pelas coxias e foyer. Há enormes malas de ferramentas ainda escancaradas, restos das hastes metálicas de cadeiras que não o chegaram a ser, andaimes desmontados entre uma miríade de outras coisas que não aconselho a espíritos sensíveis avistar pelo chão quando faltam menos de duas horas para a entrada dos convidados. Bem lhes bastará o cheiro a cola fresca que emana de alguns sectores das alcatifas e calhas de sinalização luminosa. Sempre assim foi, sempre assim será, venha uma obra portuguesa que isso não aconteça e o mundo desmaiará, não de espanto mas talvez pelo excesso de eflúvios de colas e solventes que queira Deus se aguentem pelo menos duas horas debaixo dos pés de Doutores e Engenheiros.
Há uma vastíssima equipa de montadores de cadeiras ainda a trabalhar, servidos em porcas, estruturas e parafusos pelo Brocas. "Buchas!", "Torna!", "Martelo pneumático!", "Uma dúzia de parafusos de 3/4 de polegada!", são tudo ordens que Brocas cumpre escrupulosamente, fazendo serventia contínua a um exército de metalúrgicos se necessário fosse, sem um erro, sem um queixume. Cumprimento-o cá do alto e sobe a longa ala da plateia em três penadas para me cumprimentar. Se preciso for, deslocar-se-á ao primeiro andar as vezes que forem necessárias mesmo que já me tenha cumprimentado por dez vezes nesse dia, não julguem que por deferência, mas juntará um gesto quase imperceptível a não iniciados da sua convivência, o de juntar o dedo médio e indicador sobre os lábios para requisitar um cigarro que não fumará e que guardará respeitosamente por detrás da orelha, pedindo desculpa pelo acto, sempre, mas sempre em tom submisso. De cada vez que o revejo, o cigarro desapareceu já da vista. (Seria uma outra história a de vos explicar o que Brocas faz aos cigarros coleccionados durante o dia, mas ficará para mais tarde...).
Pergunto ao encarregado dos soldadores se vai necessitar de algum material do enorme camião oficina estacionado no átrio principal, camião que foi intimado a partir pelas autoridades que controlam a gigantesca mole de materiais e de pessoas que por ali ainda circulam. Que não, que falta pouco, que há que começar a limpar os detritos que vão sobrando a cada canto. Dou, pelo intercomunicador a ordem de partida ao gigante camião onde passei os últimos quatro dias a ultimar software que há-de, também ele, fazer parte da minha contribuição para uma obra que aprendi a amar.
Quando regresso ao foyer, há, além da agitação normal, um vozear altíssimo de vocábulos estrangeiros que me capta a atenção. Um grupo de pessoas chega com enormes engradados de madeira e dele começam a retirar peças de arte, em que claramente algumas são favorecidas pela designação. Eu tenho imensa dificuldade em perceber arte que não passa aos meus olhos de um amontoado de ferro sem sentido e é isso que começa a desfilar diante dos meus olhos. Um enorme estrado raso de madeira tinta de preto é junto em pequenos quadrados no marmoreado chão, como um puzzle gigantesco. O artista, pelo menos a julgar pela pose, dá ordens e gritos à esquerda ou à direita consoante o artífice que lhe passe mais perto, tentando coordenar a junção do estrado na posição pretendida. É um verdadeiro espectáculo multimédia aquele a que assisto e permito-me pensar que se a instalação for tão apelativa quanto a gritaria da colocação da base, a obra promete. O meu intercomunicador crepita e sou devolvido à realidade das coisas. Prometi que iria ao hotel mudar de roupa para estar a tempo e horas no local da inauguração, não vá algum byte finar-se e deixar mal o senhor ministro que há-de carregar no botão, não porque saiba o significado de espetar um dos indicadores no teclado, mas porque alguém lho mandou fazer. A gente gosta deste tipo de gente.
Volto à sala para avisar o encarregado da minha ausência temporária, que é certo e sabido que se o não fizer algo será subitamente necessário, como se os Deuses de conluio brincassem à apanhada com os comuns mortais. Passo pelo Brocas que faz malabarismos com uma fantasticamente comprida mangueira de ar comprimido, escada abaixo aos rebolões, parece-me um rolo de esparguete com pernas. O encarregado diz-me que não vai precisar de nada, que está a poucos minutos de mandar iniciar a limpeza geral do anfiteatro do que ao que não lhe diz respeito dirá respeito. Está a conferir-se a solidez da última fila de cadeiras na qual labutam ainda afanosamente uma boa dúzia de soldadores e tudo parece estar em boa ordem. É já quando saio que ouço uma chamada geral no som da sala com a voz de quem anuncia o fim da guerra a informar que a limpeza geral poderá apenas demorar trinta minutos e que as equipas devem recolher de imediato toda a maquinaria.
Uma ordem de limpeza geral significa, para estas equipas a indicação de que nada ficará visível ao público depois de terminada. Cartões, máquinas, papeis, plásticos, arame, ferramentas, andaimes, volumosas bobinas de cabo serão recolhidas, muitas vezes para locais improváveis, não valerá a pena recolhê-los muito longe, porque no dia seguinte a desordem natural das coisas regressará ao que é hoje como se o espaço não tivesse sido inaugurado apenas para ministro ver. Apenas uma carga de lixo para dissimular separa aqueles homens de uma noite de descanso e isso lê-se-lhes nas faces. "Brocas, assim que tudo estiver limpo podes ir tomar banho, só vos quero cá amanhã às 14".
Quando atravesso o foyer a instalação dos italianos parece estar terminada. Rio-me sozinho do aspecto do conjunto, um mar de desperdício de alumínio, do qual emergem mangas do mesmo alumínio, como um mar no qual nadam serpentes. A instalação não se fica pela tal base de madeira preta, há pedaços de alumínio que faíscam um pouco por todo o lado. O artista está de máquina fotográfica na mão, parece satisfeito. Sorri-me quando passo por ele e interroga-me com um "belissimo?" a que respondo um aceno positivo por mera caridade. Não tenho de facto agora tempo algum para discutir arte moderna e crê-me fratello mio que não ias gostar da minha opinião.
Estou a entrar no hotel quando o telefone me toca na algibeira das calças. Quando olho o visor não deixo de vociferar. Os Deuses deram pela minha saída... Ferreira, o encarregado pede-me que regresse com toda a urgência. Mas o que foi, o que aconteceu, houve algum acidente? Houve sim e não é pequeno, se souberes do camião diz-lhe que é vital que regresse, é provável que precisemos de algumas das coisas que lá vão dentro. Peço-lhe que peça ao Brocas que dê a volta ao Centro, o camião não há-de estar longe, ainda irá para Espanha esta noite, mas sei que o motorista ainda não jantou, logo o carro estará por ai estacionado. Eu levo quinze minutos a chegar aí.
É quando regresso que me apercebo da dimensão do problema. Nada de cadeiras soltas ou filas inteiras tombadas como eu tinha pressagiado. Toda a gente olha para mim com cara de caso e sinto-me responsável por algo que não fiz. O artista italiano está a um canto com cara de quem acabou de ter uma apoplexia, a assistente grita na minha direcção como se o mundo estivesse a acabar num italiano que não entendo tal a velocidade com que fala. Peço-lhe calma. Que alguém me explique o que se passa. Custa-me entender a algarviada, mas parece que desapareceram todos os pedaços da obra de arte que não estavam em cima da base. Ok, já percebi, mas que raio tenho eu a ver com isso? Quando olho à volta verifico que é mesmo verdade, as mangas de alumínio que estavam encostadas às ombreiras das portas levaram sumiço, as longas fitas de metal brilhante que traçavam uma espécie de labirintos também tinham desaparecido. Ferreira chama-me à parte, "Você sabe do Brocas? Eu cá acho que ele limpou tudo o que havia aqui...". Sussurro o nome próprio pela grelha do intercomunicador. "Carlos... Carlos... Chega cá cima rápido!". Tento acalmar o italiano, tento explicar-lhe que tudo não passou de um mal entendido enquanto peço aos Deuses a clemência necessária para que todos os materiais regressem em bom estado. Brocas aparece-me saltitando pela esquerda baixa. "Onde é que está todo o alumínio que levaste para baixo?" Então, onde é que havia de estar Senhor Aniceto? Todo o lixo que aqui estava está dentro do contentor do entulho que está lá em baixo no parque de descargas". Não há tempo para explicar ao Brocas o que se passou, reúne-se uma troupe luso-italiana e vai tudo em amável convívio nervoso rumo ao contentor onde parecemos miúdos na gandaia a vasculhar entre pedaços de alcatifa e enormes cartões prensados. Não me atrevo sequer a perguntar aos italianos se está tudo em condições. É, para mim pelo menos, óbvio que não está. Há alumínio esmagado por todo o lado, muito dele que não pertence à instalação, são restos de caixilharia maquinada e outro lixo metálico avulso. Pelos gestos nervosos do italiano parece-me que ele não conhece assim tão bem a sua obra quando dou com ele a encher uma caixa de aparas de lá de rocha que sobraram do forro das paredes. Não importa, há que remediar a limpeza promovida. Brocas nunca entenderá o que já lhe começaram a tentar explicar. "Mas aquilo era lixo... Não faltaria gritarem-me se eu me tivesse esquecido de limpar de lá aquelas merdas... Sim que aqui ao Brocas mandaram-me ajuntar o lixo todo... E eu alguma vez pensei que aquilo não fosse para deitar fora!?"
Hei-de nessa mesma noite voltar a ver a obra de arte remontada no foyer. Das mossas que vejo nas tubagens nunca virei a saber a origem, se da arte propriamente dita se da viagem ao fundo do entulho do contentor. O italiano há-de beber um copo comigo, mais tarde no bar do CCB. Hei-de pedir-lhe desculpa uma vez mais e a quem perguntarei (a medo) se foi possível recuperar tudo o que parecia perdido. "Si, tutti, grazie mille!". Hei-de finalmente dormir sem intercomunicadores e preocupações.
Hei-de morrer a rir, já tarde na noite quando vejo o Brocas meter dentro do seu saco da roupa uma enorme manga de alumínio flexível. Hei-de encher o peito de ar para o repreender e hei-de ouvir qualquer coisa como "Cabrões! Deitar fora peças tão caras. Sabe quanto custa isto, sabe? Mais de um conto e quinhentos! Há-de servir que nem uma luva na chaminé do meu esquentador, ai isso é certinho! Chaminé, tá a ver Senhor Aniceto?". Hei-de ver Brocas rir-se da sua presa e levar e afastar da boca dois dedos unidos enquanto repete "Chaminé, chaminé, tá a ver Senhor Aniceto?".
Pois a história que vos conto passou-se nos idos do século passado quando se terminavam apressadamente as obras do Centro Cultural de Belém. Atrasados, para não variar nas lusas empreitadas, os acabamentos do grande auditório, obra imensa da qual me orgulho também de ter participado ainda que na rectaguarda.
Quando entro na sala para conferir do ponto de situação, vagueio entre montanhas de desperdício do forro acústico espalhadas pelas coxias e foyer. Há enormes malas de ferramentas ainda escancaradas, restos das hastes metálicas de cadeiras que não o chegaram a ser, andaimes desmontados entre uma miríade de outras coisas que não aconselho a espíritos sensíveis avistar pelo chão quando faltam menos de duas horas para a entrada dos convidados. Bem lhes bastará o cheiro a cola fresca que emana de alguns sectores das alcatifas e calhas de sinalização luminosa. Sempre assim foi, sempre assim será, venha uma obra portuguesa que isso não aconteça e o mundo desmaiará, não de espanto mas talvez pelo excesso de eflúvios de colas e solventes que queira Deus se aguentem pelo menos duas horas debaixo dos pés de Doutores e Engenheiros.
Há uma vastíssima equipa de montadores de cadeiras ainda a trabalhar, servidos em porcas, estruturas e parafusos pelo Brocas. "Buchas!", "Torna!", "Martelo pneumático!", "Uma dúzia de parafusos de 3/4 de polegada!", são tudo ordens que Brocas cumpre escrupulosamente, fazendo serventia contínua a um exército de metalúrgicos se necessário fosse, sem um erro, sem um queixume. Cumprimento-o cá do alto e sobe a longa ala da plateia em três penadas para me cumprimentar. Se preciso for, deslocar-se-á ao primeiro andar as vezes que forem necessárias mesmo que já me tenha cumprimentado por dez vezes nesse dia, não julguem que por deferência, mas juntará um gesto quase imperceptível a não iniciados da sua convivência, o de juntar o dedo médio e indicador sobre os lábios para requisitar um cigarro que não fumará e que guardará respeitosamente por detrás da orelha, pedindo desculpa pelo acto, sempre, mas sempre em tom submisso. De cada vez que o revejo, o cigarro desapareceu já da vista. (Seria uma outra história a de vos explicar o que Brocas faz aos cigarros coleccionados durante o dia, mas ficará para mais tarde...).
Pergunto ao encarregado dos soldadores se vai necessitar de algum material do enorme camião oficina estacionado no átrio principal, camião que foi intimado a partir pelas autoridades que controlam a gigantesca mole de materiais e de pessoas que por ali ainda circulam. Que não, que falta pouco, que há que começar a limpar os detritos que vão sobrando a cada canto. Dou, pelo intercomunicador a ordem de partida ao gigante camião onde passei os últimos quatro dias a ultimar software que há-de, também ele, fazer parte da minha contribuição para uma obra que aprendi a amar.
Quando regresso ao foyer, há, além da agitação normal, um vozear altíssimo de vocábulos estrangeiros que me capta a atenção. Um grupo de pessoas chega com enormes engradados de madeira e dele começam a retirar peças de arte, em que claramente algumas são favorecidas pela designação. Eu tenho imensa dificuldade em perceber arte que não passa aos meus olhos de um amontoado de ferro sem sentido e é isso que começa a desfilar diante dos meus olhos. Um enorme estrado raso de madeira tinta de preto é junto em pequenos quadrados no marmoreado chão, como um puzzle gigantesco. O artista, pelo menos a julgar pela pose, dá ordens e gritos à esquerda ou à direita consoante o artífice que lhe passe mais perto, tentando coordenar a junção do estrado na posição pretendida. É um verdadeiro espectáculo multimédia aquele a que assisto e permito-me pensar que se a instalação for tão apelativa quanto a gritaria da colocação da base, a obra promete. O meu intercomunicador crepita e sou devolvido à realidade das coisas. Prometi que iria ao hotel mudar de roupa para estar a tempo e horas no local da inauguração, não vá algum byte finar-se e deixar mal o senhor ministro que há-de carregar no botão, não porque saiba o significado de espetar um dos indicadores no teclado, mas porque alguém lho mandou fazer. A gente gosta deste tipo de gente.
Volto à sala para avisar o encarregado da minha ausência temporária, que é certo e sabido que se o não fizer algo será subitamente necessário, como se os Deuses de conluio brincassem à apanhada com os comuns mortais. Passo pelo Brocas que faz malabarismos com uma fantasticamente comprida mangueira de ar comprimido, escada abaixo aos rebolões, parece-me um rolo de esparguete com pernas. O encarregado diz-me que não vai precisar de nada, que está a poucos minutos de mandar iniciar a limpeza geral do anfiteatro do que ao que não lhe diz respeito dirá respeito. Está a conferir-se a solidez da última fila de cadeiras na qual labutam ainda afanosamente uma boa dúzia de soldadores e tudo parece estar em boa ordem. É já quando saio que ouço uma chamada geral no som da sala com a voz de quem anuncia o fim da guerra a informar que a limpeza geral poderá apenas demorar trinta minutos e que as equipas devem recolher de imediato toda a maquinaria.
Uma ordem de limpeza geral significa, para estas equipas a indicação de que nada ficará visível ao público depois de terminada. Cartões, máquinas, papeis, plásticos, arame, ferramentas, andaimes, volumosas bobinas de cabo serão recolhidas, muitas vezes para locais improváveis, não valerá a pena recolhê-los muito longe, porque no dia seguinte a desordem natural das coisas regressará ao que é hoje como se o espaço não tivesse sido inaugurado apenas para ministro ver. Apenas uma carga de lixo para dissimular separa aqueles homens de uma noite de descanso e isso lê-se-lhes nas faces. "Brocas, assim que tudo estiver limpo podes ir tomar banho, só vos quero cá amanhã às 14".
Quando atravesso o foyer a instalação dos italianos parece estar terminada. Rio-me sozinho do aspecto do conjunto, um mar de desperdício de alumínio, do qual emergem mangas do mesmo alumínio, como um mar no qual nadam serpentes. A instalação não se fica pela tal base de madeira preta, há pedaços de alumínio que faíscam um pouco por todo o lado. O artista está de máquina fotográfica na mão, parece satisfeito. Sorri-me quando passo por ele e interroga-me com um "belissimo?" a que respondo um aceno positivo por mera caridade. Não tenho de facto agora tempo algum para discutir arte moderna e crê-me fratello mio que não ias gostar da minha opinião.
Estou a entrar no hotel quando o telefone me toca na algibeira das calças. Quando olho o visor não deixo de vociferar. Os Deuses deram pela minha saída... Ferreira, o encarregado pede-me que regresse com toda a urgência. Mas o que foi, o que aconteceu, houve algum acidente? Houve sim e não é pequeno, se souberes do camião diz-lhe que é vital que regresse, é provável que precisemos de algumas das coisas que lá vão dentro. Peço-lhe que peça ao Brocas que dê a volta ao Centro, o camião não há-de estar longe, ainda irá para Espanha esta noite, mas sei que o motorista ainda não jantou, logo o carro estará por ai estacionado. Eu levo quinze minutos a chegar aí.
É quando regresso que me apercebo da dimensão do problema. Nada de cadeiras soltas ou filas inteiras tombadas como eu tinha pressagiado. Toda a gente olha para mim com cara de caso e sinto-me responsável por algo que não fiz. O artista italiano está a um canto com cara de quem acabou de ter uma apoplexia, a assistente grita na minha direcção como se o mundo estivesse a acabar num italiano que não entendo tal a velocidade com que fala. Peço-lhe calma. Que alguém me explique o que se passa. Custa-me entender a algarviada, mas parece que desapareceram todos os pedaços da obra de arte que não estavam em cima da base. Ok, já percebi, mas que raio tenho eu a ver com isso? Quando olho à volta verifico que é mesmo verdade, as mangas de alumínio que estavam encostadas às ombreiras das portas levaram sumiço, as longas fitas de metal brilhante que traçavam uma espécie de labirintos também tinham desaparecido. Ferreira chama-me à parte, "Você sabe do Brocas? Eu cá acho que ele limpou tudo o que havia aqui...". Sussurro o nome próprio pela grelha do intercomunicador. "Carlos... Carlos... Chega cá cima rápido!". Tento acalmar o italiano, tento explicar-lhe que tudo não passou de um mal entendido enquanto peço aos Deuses a clemência necessária para que todos os materiais regressem em bom estado. Brocas aparece-me saltitando pela esquerda baixa. "Onde é que está todo o alumínio que levaste para baixo?" Então, onde é que havia de estar Senhor Aniceto? Todo o lixo que aqui estava está dentro do contentor do entulho que está lá em baixo no parque de descargas". Não há tempo para explicar ao Brocas o que se passou, reúne-se uma troupe luso-italiana e vai tudo em amável convívio nervoso rumo ao contentor onde parecemos miúdos na gandaia a vasculhar entre pedaços de alcatifa e enormes cartões prensados. Não me atrevo sequer a perguntar aos italianos se está tudo em condições. É, para mim pelo menos, óbvio que não está. Há alumínio esmagado por todo o lado, muito dele que não pertence à instalação, são restos de caixilharia maquinada e outro lixo metálico avulso. Pelos gestos nervosos do italiano parece-me que ele não conhece assim tão bem a sua obra quando dou com ele a encher uma caixa de aparas de lá de rocha que sobraram do forro das paredes. Não importa, há que remediar a limpeza promovida. Brocas nunca entenderá o que já lhe começaram a tentar explicar. "Mas aquilo era lixo... Não faltaria gritarem-me se eu me tivesse esquecido de limpar de lá aquelas merdas... Sim que aqui ao Brocas mandaram-me ajuntar o lixo todo... E eu alguma vez pensei que aquilo não fosse para deitar fora!?"
Hei-de nessa mesma noite voltar a ver a obra de arte remontada no foyer. Das mossas que vejo nas tubagens nunca virei a saber a origem, se da arte propriamente dita se da viagem ao fundo do entulho do contentor. O italiano há-de beber um copo comigo, mais tarde no bar do CCB. Hei-de pedir-lhe desculpa uma vez mais e a quem perguntarei (a medo) se foi possível recuperar tudo o que parecia perdido. "Si, tutti, grazie mille!". Hei-de finalmente dormir sem intercomunicadores e preocupações.
Hei-de morrer a rir, já tarde na noite quando vejo o Brocas meter dentro do seu saco da roupa uma enorme manga de alumínio flexível. Hei-de encher o peito de ar para o repreender e hei-de ouvir qualquer coisa como "Cabrões! Deitar fora peças tão caras. Sabe quanto custa isto, sabe? Mais de um conto e quinhentos! Há-de servir que nem uma luva na chaminé do meu esquentador, ai isso é certinho! Chaminé, tá a ver Senhor Aniceto?". Hei-de ver Brocas rir-se da sua presa e levar e afastar da boca dois dedos unidos enquanto repete "Chaminé, chaminé, tá a ver Senhor Aniceto?".
4 comentários:
Isto sim, é entrar no ano em grande!
Espectacular!!! Quando falas do passado nestes termos, afastas-te mais do tom saramaguiano. E a coisa sai muito bem!
E agora eu percebo, o distinto que me parecia, o cimo do meu esquentador.
Puxa, fantástico!!!!
Isso me lembra do cara que colocou um pincel amarrado no rabo de um jegue e fez ele "pintar" um quadro, vendido a preso de ouro.
Ou outro, em uma exposição de arte, ao receber elogios a um quadro seu, espantou-se: "caramba, quem colocou isso aqui??? Era o pedaço de tela que eu usava para limpar os pincéis..."
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