04 agosto 2006

A dog gotta do, what a dog gotta do

São oito da manhã e o trânsito na Estrada Nacional 10 está o caos habitual. A N10, uma das mais divertidas estradas portuguesas, liga Vila Franca de Xira a Setúbal, passando por Lisboa em pedaços autenticamente virtuais, já que esta via tem seguramente uns seis ou sete segmentos, nasce aqui, interrompe ali, atravessa o Tejo para renascer na Cova da Piedade, um dia decerto alguém me explicará esta estranha forma de semear estradas. Não importa para o caso, a ribeira vai cheia e o carro não anda, não tenho um amor lá da outra banda e estou à sombra a aguardar que uma dada loja abra. A procissão de carros, carrinhas e carretas avança dolorosamente em direcção a Lisboa, primeira, uma segunda vá lá que hoje é dia de festa e lá vão eles. Reparo num cão com péssimo aspecto, magríssimo, carregado de carraças que tenta perceber como vai atravessar aquele rio de alcatrão. Um passo à frente, dois atrás que vem lá mais um veículo, está nisto há quase dez minutos, não é fácil ser-se cão, mais a mais um cão peão. Mas o cão não cede e vai metendo o focinho, olhando à esquerda e à direita como quem diz "Vá lá, deixem-me lá passar que tenho de ir não sei para onde". Alguém na faixa mais próxima do cão se enternece e pára. O cão avança uns metros, pára no traço contínuo (deve ser um cão deveras experimentado) e volta a parar. Um camião trava do outro lado, hidráulicos resfolegando, o cão assusta-se e recua dois passos. Está tudo parado, os condutores sorriem, é fácil um tipo sorrir quando se está no fresquinho do ar condicionado, sorriem uns para os outros com piedade do animal, que está ali no meio, tem-te não andes, e não há meio de vencer a restante tira preta. Ninguém sabe bem o que fazer, o camionista chama-o, já vejo uma senhora com ar de quem vai abrir a porta para enxotar o bicho, a fila já recomeçou a andar e está tudo ali, suspenso de um cão que não sabe o que fazer. Olho para o indeciso bicho, que sabiamente está agachado no traço contínuo e toda a gente se ri sem que eu perceba porquê. O cão, continua agachado e resolveu aliviar a tripa, ali mesmo, como quem diz "Eu quero lá saber que vocês tenham pressa..."

3 comentários:

Anónimo disse...

comprovadamente o melhor amigo do homem. só um bicho simpático, embora carregado de outros bichos menos dotados da mesma característica, para fazer alguém rir nas longas esperas no emaranhado de "naves" rodoviárias que é lisboa.

pode parecer estranho mas a nobreza que o Pedro salutou da senhora para com o animal muitas vezes apenas se verifica com os pobres quadrupedes rodoviários. tantas outras há que um bípede menos dotado no campo visual espera por um gesto de "caridade" de um semelhante que acaba por nunca chegar.

apostaram agora as entidades em sinais sonoros, irritantes para os meus ouvidos, que se sobrepõem uns aos outros mas que, parece, surtem algum efeito. nada como um quadrupede guia....

julgo que será impossível dizer que estes animais não são dotados da inteligência que falta a muitos bípedes!

Paulo A. Silva

Frederico Lucas disse...

É caso para dizer:
"Dissertação de um cão com carraças"!

Anónimo disse...

Ou como se diz por aqui, "quanto mais magro é o cão, mais as pulgas o apoquetam".