Ninguém sabe porque é que C. voou de um lado ao outro da sala da colectividade. Ninguém sabe e a sala estava cheia de testemunhas que aos costumes viram nada, é da praxe, dos livros, dos cânones mais ou menos ortodoxos. A verdade é que C. voou de um lado ao outro da sala, evitando quase miraculosamente levar consigo a mesa e as quatro cadeiras e por consequência as chávenas, copos e restante palamenta cafeínica. C. que é magro como pau de virar tripas (ainda que o narrador se interrogue se ainda haverá alguém que se lembre de como se viravam tripas no antanho e agora que fala nisso se não recorda de alguma vez ter visto um seu semelhante a virá-las, muito menos com um pau magrinho), dizia o próprio antes de se perder em rituais antigos, que C. é magro, muito magro e por consequência muito leve e que é das leis da física que os graves caiam e os leves voem mais a mais se lhes dá a brisa, o vento, a insuflação, o sopro que não o do coração. Fez-se um silêncio estranho de gelado na sala enquanto C. se elevava nos ares numa mancha de ganga azul e se espatifou contra a máquina das bolas de plástico que jaz a um canto, digo jaz e digo bem, é apropriado, tem cabimento e alguma propriedade. Ninguém sabe não é de todo verdade, o narrador estava de olho noutra cena mas de ouvido naquela, um no burro outro no cigano, o que também se escapa à mais pura das verdades porque ciganos era espécie que se não lobrigava mas abrir-se-á uma excepção à classe asinina como adiante se há-de ler pelo menos para quantos tiverem estofo e coragem para ir mais adiante. O narrador sabe quem esbofeteou C., um sopapo digno de um grande plano de Rocky, um uppercut de efeitos devastadores se aplicado convenientemente pelos parâmetros da grega nobre arte. C., que não esperava o golpe voou pela sala, parecia tomado pelo espanto, do mesmo espanto de que estavam agora tomados todos os presentes que também não esperavam ver C. a subir aos céus e a amarrotar-se num canto, amachucado no seu amor-próprio e a tentar desenvencilhar-se de uma máquina que insiste em dizer em castelhano "Hola! Yo soy un mono!". T., uma mulher que parece retirada de um fresco romano, falta-lhe apenas a túnica cintada em azul, esfregou as mãos e exclamou: "Toma lá que isto é para não nadares para fora de pé!" e saiu de ar esfíngíco, pescoço bem levantado et pour cause, nariz no ar, sem mandar recado por ninguém. Cruzaram-se olhares, eu desviei o meu, sou a única pessoa que ouviu a frase assassina que haveria de acender o lume, a pederneira que faiscou a pólvora, a sinapse que mandou contrair o músculo. Os olhares passaram do espanto à interrogação, é algo que sucede bastante aos olhares dos que não dão por nada, dos que vêem a obra feita sem ter dado pelos operários, e eu ali, a tentar disfarçar o meu embaraço, que também um homem se choca, mesmo que necessariamente precise de mais matéria para chegar ao cume da estupefacção. Por momentos fiquei convencido de que fora eu mesmo a aplicar-lhe o soco, foi a primeira coisa em que pensei quando C. proferiu a sua própria sentença que lhe deu asas e o condenou a voar, voo efémero é certo, mas uma bela trajectória aérea. Por esta altura já a plateia fervilhava de excitação e curiosidade, apenas se sabe que se falava de uma inovação na aldeia, a chegada do Gás Natural, que obrigaria a algumas quebras da rotina caseira. Eu mesmo falei do dia já agendado para que as equipas técnicas possam cumprir as suas obrigações que incluem mudanças e afinações de bicos e queimadores. Foi quando C. imediatamente antes de ganhar asas se dirigiu a T. que tinha acabado de mostrar a sua preocupação com a segurança das bilhas e a meia voz proferiu "E eu que tenho a bilha sempre aberta...", coisa que não fica bem a uma senhora dizer e menos bem fica a um senhor apanhar do chão e voltar a frisar. Quando abri os olhos para evitar o deslize de C. já era tarde, a bola cruzada em arco cesgado que pinga na área à mercê do avançado que nem domina com um rodriguinho, chuta de primeira, neste caso não chutou, apenas repisou em tom jocoso "Ai tens a bilha sempre aberta?" e foi o que se viu e leu, a romana patrícia puxou o ainda formoso corpo atrás e foi golo de bandeira ou placa, um belo golo por sinal saindo em glória, as faces vermelhas do sangue que afluiu, que fica sempre bem a uma senhora corar.
23 maio 2008
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9 comentários:
:)
Está decidido! Vou convidá-lo a relatar determinados acontecimentos que cá sei!
Vieram-me as lágrimas aos olhos...lembrei-me tanto, mas tanto, da minha avó!
Obrigado Pedro.
Muito bom! Poético seria ter-lhe dado em vez de um soco, um valente pontapé na bilha... Ou pelo menos como finishing move. :)
"e agora que fala nisso se não recorda de alguma vez ter visto um seu semelhante a virá-las, muito menos com um pau magrinho"
O pau magrinho era, normalmente, um vime daqueles que o Joaquim do Olheiro usava para fazer cestos e cestas. Curiosamente, veja-se a contradição, o tal "pau de virar tripas" era um vime dos mais grossos. Não acredito que nunca tenhas ido à Ribeira da Serra assistir, no dia da matança do porco... (mais tarde, com modernices de ter água corrente - com alguma pressão - passou a fazer-se o serviço junto ao tanque).
Fiquei sem perceber e a tal figura românica era uma espécie de deusa, de quem nao se podia esperar um tal comportamento... ou por outro lado alguém de porte fisico adequado ao tal uppercut
Ricardo: Vi isso dúzias de vezes. Sempre na Ribeira e nunca no tanque... O ritual dos limões, dos tabuleiros mas não tenho nenhuma memória do vime. (Era nesta altura que eu levava um soco...)
Como as tripas são um tanto viscosas, tornava-se difícil lavá-las com eficácia para função que lhes estava reservada. Especialmente no interior. A solução (secular, presumo), foi arranjar esses vimes grossos (mas extremamente lisos e que, portanto, provocavam mínimos danos à tripa), com cerca de um metro e "virar" as tripas com eles.
Técnica (se só começou a ler agora, volte ao início da conversa, por favor!): introduz-se o vime na tripa e depois vira-se a mesma do avesso, usando o vime como suporte. Esfrega-se muito bem. Repetidamente, até que esteja muito bem lavada e cheirosa (o Pedro falou nos limões, lembram-se?).
E há uma altura em que entram na lida umas tripas plásticas (ou pelo menos penso que seriam plásticas) que substituiram as legítimas tripas originais. Sei que vinham nuns saquinhos muito bem enroladas e eram cor de hóstia...
Fiquei sem perceber e a tal figura românica era uma espécie de deusa, de quem nao se podia esperar um tal comportamento... ou por outro lado alguém de porte fisico adequado ao tal uppercut
Muito bem observado, João. Nos meus textos ficam sempre coisas por resolver. A verdade é que a romana patrícia (porque tem mesmo ar de romana patrícia) tem um ar etéreo, apesar da idade, mantendo um físico que se adivinha mais do que se deixa ver, de ama recatada mas a quem o fogo ainda não se extinguiu. Devia ter na verdade investido mais tempo na descrição. Ficará para uma próxima.
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