21 fevereiro 2009

As três mentiras (Solução)

Se começar a ler este texto e não perceber nada do que está a suceder, das duas uma, ou você é o David Luíz ou não leu o enunciado inicial de "As três mentiras".

1- Já acordei (depois de um acidente grave), pensando que tinha morrido e que estava no outro mundo.
Verdade. Tive um acidente de viação muito grave em Lisboa, decorria o ano de 1982. Perdi a consciência no preciso momento do embate e só a recuperei três dias depois quando acordei numa sala mergulhada na penumbra em que havia uma porta envidraçada ao fundo de um corredor, porta essa em que incidia uma forte luminosidade. Fiquei verdadeiramente convencido porque achei que aquilo era o famoso "outro mundo". Não era. Ao fim de alguns minutos, a ridícula bata que tinha vestida, pejada de carimbos a dizer "Hospital de S.José", devolveu-me à realidade. Isso e um molho imenso de radiografias que pendiam do fundo da cama e, como todos sabemos, não se fazem radiografias no paraíso porque lá nem um pratinho se parte.

2- Já assisti a um espectáculo de ventriloquismo numa casa de putas em Leiria.
Verdade. Há coisas que só me sucedem a mim. Há uns anos, terminada uma longa maratona de trabalho no Núcleo Empresarial de Leiria, fui ao hotel tomar banho e perguntei ao recepcionista se em Leiria, mesmo sendo tão tarde - eram duas da manhã - ainda poderia "comer qualquer coisa". Tenho dúvidas que ele tivesse interpretado correctamente o meu pedido pois a morada que me forneceu (e que levei tempo a encontrar) era a de um prostíbulo, onde efectivamente se podia comer "qualquer coisa". O jantar foi acompanhado de um show de ventriloquismo, (com patinho e tudo), enquanto madames com idade para serem minhas avós trabalhavam na sala. Nunca me esquecerei, por mais anos que viva, do surrealismo da situação e do nome da empresa que constava da factura final. "Restaurante Bar Académico".

3- Já fumei substâncias ilegais em Moscovo, à porta do Kremlin.
Mentira. Com grande pena minha nunca estive em Moscovo, mas bastante mais importante do que isso, tenho no meu curricula uma total ausência de consumo de substâncias ilegais.

4- Já fiz contrabando de discos rígidos de 10 Megabytes.
Verdade. Já fiz contrabando de discos (e de muito outro material). Corria o ano de 1982, as fronteiras europeias não tinham ainda sido abertas com a integração europeia, era altamente compensador adquirir hardware no estrangeiro fugindo às penalizadoras taxas alfandegárias. Um complicado esquema que envolvia uma viatura, viagens Lisboa - Bruxelas em modo "non stop", três condutores e muita, mas mesmo muita paciência e habilidades para escapar aos controlos de fronteira. Foram tempos loucos dos quais tenho imensa saudade, principalmente de recordar que havia um posto fronteiriço em Portugal que encerrava às vinte e uma e que depois disso tinha que se aldrabar o cadeado da corrente que fechava a estrada. Ética de contrabandista, depois de passada a corrente tombada no chão, era de bom tom voltar atrás para repor o cadeado e a corrente, não fossem os espanhóis pensar em invadir a Lusitânia depois do jantar só porque eu deixava a porta aberta.

5- Já fui convidado a abandonar uma cerimónia religiosa de casamento porque me opunha ao dito cujo.
Mentira. É verdade que esta frase foi inspirada numa cerimónia religiosa de casamento a que de facto assisti, eu e um grupo de amigos, em estado bastante etilizado e onde provocámos um enorme sururu no momento decisivo do "Aceitas este homem como teu esposo" levando o sacerdote a interromper o rito para ter a certeza do que se estava a passar. Foi-nos sugerido que apanhássemos ar, mas não me lembro se algum de nós aceitou o conselho. Aliás, deste casamento lembro-me de pouquíssimas coisas. Salvo que a noiva ia linda. (Quando um tipo está com os copos, qualquer noiva vai linda...).

6- Já joguei King durante 90 minutos sentado numa caixa que continha um coração humano doado.
Verdade. O transporte de médio/longo curso de órgãos para transplante foi, durante anos (creio até que isso ainda acontece) efectuado pela Força Aérea Portuguesa. Por razões que não interessam nada para este assunto, (nada mesmo!), vi-me obrigado a sair com a tripulação na aeronave que levaria o coração a uma cidade portuguesa, aeronave essa que não tem estrutura alguma que permita que os tripulantes viajem confortavelmente. Para queimar tempo, organizou-se um jogo de King e o único assento disponível para mim era a caixa de transporte de órgãos que era sólida o suficiente para o meu peso de então. Evidentemente que a viagem ao destino não levou noventa minutos, mas jogámos também durante o regresso e a caixa voltou a viajar connosco e a cumprir o seu duplo papel salvador. Levei quase dois dias a recuperar a minha audição normal.

7- Já estive no velório de um morto errado (e depois de o perceber fui ao velório certo).
Verdade. Quando o meu pai me telefonou um dia de Tomar para Lisboa dizendo-me "Oh pá, morreu o Pereira", pessoa que eu conhecia vagamente, perguntei-lhe o que é que queria que eu fizesse. "Vais lá à igreja, representas-me, que não me dá jeito nenhum interromper o que estou a fazer para ir a Lisboa e voltar...". Acedi, recebi as indicações necessárias, basicamente o nome da igreja e no final do dia, depois de jantar, desloquei-me à Praça de Londres em Lisboa, disposto a cumprir o meu papel de representante da família Aniceto junto do féretro. Rapazinho despachado, entrei capela adentro para deparar com a viúva, a urna e o morto, apenas acompanhados pelo funcionário da agência funerária. Apresentei os sentidos pêsames à compreensivelmente soluçante viúva, que de dentro do seu véu balbuciou algo que eu não entendi mas que provavelmente foi um agradecimento e pensei em retirar-me. Não fui capaz de o fazer de imediato e optei por uns minutos de recolhimento (absolutamente fingido), por forma a que findo esse momento me pudesse então pisgar para ir à minha vidinha. Quando me retirei e cheguei perto do carro no estacionamento encontrei um colega do meu pai, esse bem meu conhecido, que me saudou e me disse algo como "Não te vi lá dentro, mas também, está lá tanta gente...", que me deixou apreensivo e certo do meu engano. Era noutra capela, não naquela a que tinha ido. Esperei pacientemente que as pessoas se afastassem e voltei ao velório correcto para, desta vez, fazer a coisa acertada. Suponho que a viúva do outro funeral ainda hoje diga aos seus conhecidos: "Mas quem é essa família Aniceto?"

8- Já escrevi três frases na sentença de um juiz que estava demasiado embriagado para a conseguir terminar.
Verdade. No início dos anos oitenta fui chamado a dar uma assistência a um juiz de uma Comarca bem distante de Lisboa. Quando cheguei a casa do Meretíssimo, percebi de imediato pelo volume do vasilhame disperso pelas assoalhadas que estava perante um verdadeiro apreciador de líquidos escoceses. Durante a minha operação, num moderno (para a altura) AT 286 e uma impressora daisy wheel, o magistrado despejou sozinho (ainda hoje não consigo beber álcool pela manhã), uma garrafa de Johnny Walker Black Label. Pedi-lhe que me deixasse sozinho durante algum tempo, já que ele insistia em tombar perante a mesa, por forma a poder terminar a reparação. Quando isso aconteceu e o fui procurar, ele dormia profundamente num sofá de outra sala e pura e simplesmente não o consegui acordar. De volta à máquina, e porque sabia o que ele queria fazer, peguei no texto manuscrito numa letra inacreditavelmente difícil e digitei as três últimas frases que faltavam na sentença transcrita. Imprimi o trabalho, conferi a condição da reparação, deixei-lhe o report técnico colado no monitor e saí. Só o voltei a ver, há não muito tempo, num debate televisivo sobre Justiça.

9- Já fui detido por desobediência à autoridade.
Mentira. Não fui detido, mas fui ameaçado disso mesmo por um agente de autoridade a quem me neguei terminantemente acatar uma ordem. Acabei autuado num valor significativo para a época (1982, Quarenta e cinco mil escudos), por desobediência e obstrução da via pública com grave perturbação de circulação. Recordar-se-ão aqueles que tiveram a desdita de montar stands na velha Feira Industrial de Lisboa, do pavor que era conseguir chegar aos parques de cargas e descargas, operações que envolviam por vezes dias inteiros apenas para aceder com as viaturas aos locais pela Rua da Junqueira. Depois de seis horas de desesperante espera, a longuíssima fila de viaturas pesadas estendia-se quase até ao Hospital Egas Moniz e a zelosa agente de autoridade escolheu-me a mim para interpelar e mandar circular, ignorando todos os restantes veículos em espera. Deve ter sido uma das maiores birras que fiz na vida. A hipótese de perder o lugar na fila a poucas horas do limite para o fim dos trabalhos nos pavilhões e a prepotência velhaca daquela figurinha fez-me telefonar ao cliente perguntando se se responsabilizava pelo valor do auto. Assim que obtive a concordância deste, desfiz-me da chave da viatura (literalmente) e disse-lhe que fizesse o que muito bem lhe apetecesse porque dali é que eu não retiraria a viatura. Tudo terminou umas horas mais tarde na Esquadra do Calvário e viria a perder a questão em Tribunal uns valentes anos mais tarde.

10 comentários:

mw disse...

Pedro, acreditas que os acessos se mantêm inalterados para o agora Centro de Congressos de Lisboa, antiga FIL? Continua-se a fazer fila às 8 para se conseguir entrar às 10/11 com agentes a mandarem circular... há menos feiras e são mais pequenas, mas a confusão mantém-se.

Pedro Aniceto disse...

Acredito. Aqueles parques são miseravelmente pequenos e quem consegue entrar só tira de lá porra dos carros quando acaba de apertar o último parafuso...

blimunda sete luas disse...

Acho que só falhei por uma! :-)

Perdeste-te ontem pelo caminho ou devias mesmo ter levado a couve à lapela? :-)

Ana Ferreira disse...

Só falhei uma :)

Patricia Lousinha disse...

Esse Juiz é único! Oh, oh!

' Claudjinha disse...

afinal há gente que escreve bem mais que eu. essa do funeral errado.. matou-me.. :P

Maria Manuela disse...

O que me tenho divertido com este desafio das 3 petas. De todas, a única que achei não ser possível seria a do coração....

:) enganei-me !!!

Ricardo Antunes disse...

O ano de 1982 foi animado... :)

Sal e Ervas disse...

Bem Pedro...queria te contar a minha história de funeral…eu entrei na capela...fiquei com receio de me aproximar do caixão...como não vi ninguém conhecido fui para um canto chorar o meu querido amigo que havia partido...depois de um bom tempo resolvi me aproximar e qual não foi a minha surpresa?!!!! Não era o meu amigo...na verdade só me ocorreu rir...mas mantive-me firme...e fui para o funeral verdadeiro!!!! Agora posso dizer só a mim e ao Pedro Aniceto que acontece essas coisas!!!!
Beijinhos e bom Carnaval

Peter Gunn disse...

Ora bolas... só acertei a 3!

Isto há juizes danados para a brincadeira! :) Veja-se o caso do Magalhães na semana passada!