Uma corrida em Vila Franca, dia aziago, má fortuna e um segundo ajuda que fraco fora. Que lá não estava quando foi precisa a função. Houve homens pelo ar, coisa comum em Vila Franca e nem sempre apenas dentro das tábuas da praça, o forcado da cara sem arte para se encaixar na cara do touro e ele ali à mercê dos cornos, enrolado no chão como um bicho de conta, à reboleta disseram-lhe mais tarde na enfermaria quando recuperou os sentidos, uns mais que os outros porque as dores eram bastas, mais bastas que os cheiros ao sangue de touro e forcado, confessou-me agora entre dois tragos de algo que levemente se assemelhava a vinho e com palavras mais simples que estas. Teve sorte. Teve a sorte de não ter mais rasgões na carne que na jaqueta. Uma pisadela do touro, a dor excruciante, teve sorte, diz ele. Quinze dias de hospital a ver a vida megera a andar para trás, o negrume na perna a subir, a subir, negro como carvão, como uma pedra de carvão, confessou-me ele ao fim do quarto copo, sem que eu me importasse já com a qualidade do néctar.
Quiseram todos os sete cortar-me a perna. Quem?, perguntei eu já um pouco toldado e tão perdido como uma vaca choca. Os médicos, pá! Sete especialistas, sete, todos a dizerem-me que a perna estava podre, perdida. "Rezei. Rezei bastante e Nossa Senhora (ou alguém por ela que pode perfeitamente nestas coisas subestabelecer-se o poder miraculoso), trouxe-me um anjo. Pensei que fora do vinho, mas não, respirei fundo e fiquei ali à espera do resto do drama. Três meses, pá! Três meses que aquele homem a quem chamavam o Pimpão, curandeiro de fama e que bem podia ser Doutor, me tratou. Recuperei também eu os sentidos, Respirei fundo e aguentei sereno a investida, sim, que os narradores, tal como os homens, não são de ferro. Não estou a perceber. Como é que ele te salvou? Não sei, sei que durante três meses ele usou uma tigela de banha. Ia perguntar "Uma tigela?" mas não tive tempo, já o touro investia e não havia tempo senão de me confiar à Virgem del Rocio. Sim, ele barrava-me a ferida, mais funda que este maço de tabaco. E se aquilo cheirava mal! A ferida? perguntei eu a medo, sentindo já o bafo do animal. Não, pá! A banha. Três meses. E depois de me tratar com aquilo, vinha uma velha e com um ramo de salsa e fazia uma reza. Interessei-me pela terapia. Definitivamente. Não sabia pormenores, o que sai deste episódio de ambulatório é que o negrume diminuía. De dia para dia, pá! E eu a sentir-me melhor e o cabo do grupo a dizer-me "Zé, daqui a uns dias vamos pegar em Las Ventas e tu não podes pegar…".
Prometi-lhe cem contos, e olha que isto foi no tempo em que cem contos era dinheiro! "Ponha-me bom. Ponha-me bom e arranjo-lhe os cem contos e dois convites para a corrida". Pimpão perdeu a corrida, não a de Las Ventas mas a do contra-relógio. Não podes ir pegar assim. Que não, que tinha de ser. Tenho a namorada nas bancadas. Houve ali dias de farpa. O senhor enrola-me a perna bem enrolada, eu sinto-me melhor, eu vou à cara! "Vais fardar-te, Zé?" Foi. O Miura embolado partiu cedo, cedo demais, o segundo ajuda aos costumes não estava pronto, levou pelos vistos uma tareia de touro, ali no chão outra vez enrolado como um bicho de conta. A perna haveria de ficar ali num bloco operatório espanhol, rota como a esperança da glória em praça. Ela era linda. Haveria mais tarde de casar com outra que me deu um filho também forcado. E hoje quando o coxo, em pleno largo da aldeia perguntou ao filho "Vais fardar-te, filho?" os olhos brilhavam-lhe mais que o alumínio das muletas. Das ortopédicas. Mas podiam ser das outras que acompanham o estoque.
26 março 2011
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4 comentários:
Definitivamente, e apesar de só uma vez ter andado nos cornos de um touro (ou seria uma vaca...?), tenho sangue ribatejano. Todo o enredo (incluindo o curandeiro e as mezinhas) soam-me tão naturais...
Quem assim escreve está à espera de quê? para escrever um bom romance.
João
Caro Pedro
Há já 2 anos que sigo o seu blog. Não me diga que aprecia tourada??
Sim, aprecio. O que seria do amarelo...
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