12 maio 2012

Uma fenda na muralha

Imagine o leitor, mesmo que esteja neste momento sentado numa esplanada ao sol de Antares (não faço a mínima ideia se Antares tem sol - esplanadas deve ter) que desce a encosta de Santa Engrácia ou de S. Vicente de Fora (simpáticas e nobres freguesias da não menos nobre Cidade de Lisboa - desta Lisboa que amamos mas que de quando em vez tratamos com os pés), dizia eu, que desce o leitor a calçada e aqui não posso meter António Gedeão (ah e tal, não sabiam...) porque estamos a descer e aos costumes para baixo todos os santos ajudam, estamos a descer a bendita rua que vem de Sapadores até aos Caminhos Ferro. E estamos a descer encosta abaixo numa espécie de cortejo de singular alma penada, (uns por verem ir os outros e os outros sem ser por nada), e cada um irá à sua vida como decerto se depreende das escrituras e tem sido assim, com ou sem escrituras,  ao longo dos tempos.

Onze mil. Onze mil sofridas almas que diariamente se atiram ao desiderato de chegar a Santa Apolónia, botando pés e almas de calçado à calçada propriamente dita, padroeira dos dentistas, por ter visto os seus dentes quebrados em lutas de antanho em que as manifestações cívicas eram coisa um bocadinho diferente. Chegadas as onze mil almas ao fundo da rua, uma de cada vez, quando não, seria bonito de se ver, dão de caras, trombas, fuças ou outra qualquer parte da respectiva anatomia mais protuberante no muro da estação de Santa Apolónia. A própria. Terão sorte se lhes se não quebrarem os dentes, mas é para isso mesmo que há padroeiras.

No momento da tomada de decisão de qual dos lados escolher para prosseguir no seu carreiro, as onze mil formigas escolhem quase por instinto o seu lado direito. E escolhem-no porque é o lado que tem o acesso mais curto, seja para chegar à estação propriamente dita, seja para alcançar a entrada do Metropolitano que está ali do outro lado do muro de Santa Apolónia, seja para ir às compras ao Pingo Doce que está aninhado dentro das próprias instalações da REFER, ou para ir a outros lados não especificados, seja ir à pesca à linha de tainhas distraídas ou outra qualquer actividade que não será para aqui chamada, que cada um sabe de si e no caso a REFER de todos. Querem ir. Ponto. Eu disse mais curto mas menti, são mil metros que mais parecem dois mil devido ao perfil da via de acesso. Um passeiozinho mínimo, onde mal cabe um peão que não vá por aí além nos trilhos da obesidade, parece coisa boa de se fazer quando temos seis anos, um pé em cima do lancil, outro no alcatrão, hip hop, hip hop, a mim dava-me um gozo danado fazer isto quando era puto, dezenas de gerações continuarão a fazer estes e outros hip hop, hip hop, um aviãozinho militar atirou uma bomba ao ar, mas Bom Deus, que faço eu que já tenho quarenta e oito anos?. Escrevo. Escrevo enquanto outros tentam cruzar o passeio da Rua dos Caminhos de Ferro carregados de sacolas, malas de viagem, bolsas de toda a espécie rumo ao destino que como sabem ninguém escolhe, salvo os desgraçados que se dirigem onde muito bem entendem e lhes apraz.

Uma porta. Uma simples porta, uma fenda na muralha era tudo o que era preciso. Todos chegaríamos um bocadinho mais depressa, em maior segurança, esse mesmo conceito de que a REFER tem a boca cheia mas ao qual encolheria os ombros se os tivesse uma vez que só parece preocupar-se com os seus utentes a partir do momento em que adentram as portas das suas estações. Ironia do narrador, a pedir justiça divina.

Parece simples de resolver, é simples de resolver, mas em Lisboa como em muitos outros locais, nem tudo o que parece é. Toda a gente está de acordo, reparem em como são as coisas, da simples formiga no carreiro ao Sr. Engenheiro Todo Poderoso que diz "Sim, sem dúvida, ah e tal". Uma porta que permitiria que os penitentes fizessem os seus trajectos de forma rápida, eficaz, segura, direitinhos aos seus destinos. Do lado de dentro do muro desta vergonha pequenina há quatro metros e meio de gare, coberta, com passagem subterrânea que permite que toda a gentinha ou quem simplesmente queira, chegue ao outro lado desse molho de bróculos, sã e salva, sem que um pingo de chuva lhes resvale nas carecas ou se embeba em frondosas melenas, passando incólumes esse, repito-me, molho de bróculos que é a implantação da via férrea.

Anos passaram com toda esta gente num carrossel de malas, sacos e traquitanas de vária ordem, toda a gente de acordo, mesmo os senhores todos poderosos que disseram a dada altura que faltava para abrir a porta aquilo com que se transaccionam os melões e até isso (caso raro!) se ultrapassou com o necessário entendimento de duas Juntas de Freguesia e uma empresa que vende melões que convenientemente tem a sua loja de fruta dentro da estação e a quem mais onze mil potenciais clientes dariam porventura imenso uso. Queiram por favor anotar nos vossos canhenhos que neste preciso momento da história, temos gregos, troianos, cartagineses e fenícios do mesmo lado da barricada. Uns mais convictos (aqueles a quem a abertura da maldita porta no muro do lado Norte da Estação pareceria o milagre da passagem do Mar Vermelho), e os outros, o próprio Mar Vermelho que se não opõe a quem o quer abrir. Isto era coisa para dar uma adenda na Bíblia, mas receio bem que, se necessitarmos de alguma acção por parte da REFER, tenhamos que esperar que Cristo desça novamente à terra e queira Deus Pai Todo Poderoso que não se lembre de querer fazer uma aparição em Santa Apolónia, sobretudo se vier do lado de Sapadores...

Nesta altura do campeonato continuamos a ter onze mil gajos a espremer-se contra uma parede se lá vierem dois autocarros ao mesmo tempo, onze mil pessoas que à razão de mais ou menos três por ano são atropeladas ali naquela rua, vários milhares de malas de rodinhas que sofrem as agruras de viajar no empedrado e quase todos nós sabemos como é difícil e duro para os acidentais turistas de Lisboa manobrar Samsonites e malas compradas no chinês pelas pedrinhas dos passeios de Lisboa, com óbvia desvantagem para estas últimas, de composição mais frágil, quando não inadequada à função.

Estamos em Fevereiro de 2011, há engenheiros a acenar cabeças e a dizer que sim senhor, (que, como sabemos é uma coisa rara de se ver num engenheiro, mas da qual se deixa prova claramente vista no vídeo que embutimos abaixo destas mal amanhadas letrinhas) que se vai fazer a porcaria da porta, mas se ouvirmos sininhos e fizermos fast forward a todo este festival de inoperantes, aos costumes a porta "viste-la" e estaremos nisto até ao fim dos tempos se entretanto não chegar o Apocalipse ou outro evento universal que arrume de vez a questão.

É por isso mesmo que urge dizer a alguém dentro da REFER, que "Basta!". É premente fazer perceber a quem, descansadamente suspira perante uma planta de arquitectura, comodamente sentado num Gabinete de Planeamento, que do lado de fora há pessoas! Pessoas que são a razão de ser do seu próprio posto de trabalho e que não podem, repito, não podem, ser tratadas como imbecis, e que tendo a razão a meter-se-lhe pelos olhos dentros como um comboio, vão reagir. E vão reagir civilizadamente, manifestando-se ordeiramente, em fila indiana (não cabem aos pares no passeio, não sei se já perceberam - provavelmente se forem Engenheiros levarão mais alguns anos a chegar à mesma conclusão a que as formigas já chegaram faz por agora anos...), na própria Rua dos Caminhos de Ferro, onde quando dois pesados se cruzam, quem se lixa é o peão.

Chega! Chega de adiamentos, de comissões, de pessoas que não sentem na pele e nos ossos o que é ser diariamente sujeito a esta estranha forma de deslocação.

Dia 15 de Maio, pelas 19:00, todas as almas que se nos queiram juntar serão bem-vindas à Marcha dos Atropelados. Vamos mostrar a Lisboa que lhe queremos bem. Vamos pedir, de forma bem disposta que é possível abrir uma fenda no raio da muralha e que chega de desculpas. Mexam-se! Nós, os atropelados vamos armar um banzé tão grande, que o barulho se há-de sobrepor ao ruído que fazem os cérebros dos responsáveis que estão a pensar neste assunto há quase três anos.

O Movimento Cívico "Entrada Norte" agradece a sua presença no próximo dia 15 de Maio e o facto de você poder vir a estar na Rua dos Caminhos de Ferro, em marcha ordeira, passeio fora, poderá fazer toda a diferença. E caso não possa estar presente, ou que possa pensar "Isto não me diz respeito", pense que é altura de se mexer. Pela cidade, pelo civismo, por si!




 

2 comentários:

pin-a-cloth disse...

Estou um bocado longe. Mas vou em pensamento.
Beijos,
M.

Patricia Lousinha disse...

Bravo!
E sim, é síntomático quando a pena corre desta forma.