12 fevereiro 2006

Como é que eu posso dormir, se a cama me arde?

Esta é a auto-denominada de extraordinária história de um homem a quem só restam supostamente quarenta e cinco dias de vida e de outro alguém para quem os acidentes têm uma fácil explicação. Esta é também a história de gente simples, ingénua mas feliz, à sua maneira, com quem emparceiramos as nossas vidas nem que seja por alguns minutos e que gostamos de registar. Esta é a suposta história de filósofos de balcão, a quem a cerveja alimenta os sonhos e inflama a esperança. Estas são as histórias de quem nos faz num primeiro momento rir, e mais tarde meditar no que somos, no que fazemos e ao que aspiramos. Mesmo que entrelaçadas como espirais de ADN, são as vidas que se nos oferecem. E que aceitamos ou não consoante a vogal disposição.

Um acidente náutico, um barco que abalroa outro, chiar de chapa e fibra em pleno Tejo, esse rio a que regressamos sempre. Para eles, que lhe sentem o frio e o medo, é um mar. Um mar a que teimam tabém eles em regressar, apesar do frio e dos medos. Uma noite de breu, um monitor de radar que não se espreita, vá-se lá saber porquê, o acidente que ocorre sem que as culpas não sejam claras, seja pelo breu seja pelo combate dos mestres das embarcações que há anos se degladiam em tribunal. O juiz da causa, o pobre, que parece tão entalado entre as chapas dos cascos como os pneus no cais de amarração, parece uma bóia maluca a quem partiram o cabo e não é capaz de destrinçar uma manobra mal feita, que as leis da água são um pouco diferentes das dos parques de estacionamento. É isso que irrita V., piloto de rebocador, que não percebe porque é que as culpas não são atribuídas ao outro, enquanto o outro, que não conheço, deve pensar precisamente a mesma coisa com a diferença que quer que as culpas recaiam num. Há dois anos que ouço falar disto e já não passa de um faits-divers da história da navegação marítima.

Mas as histórias recorrentes são como as marés, sucedem-se inevitavelmente e a rebentação sempre nos salpica com a espuma das memórias de marés já vazadas. "Eh pá, quando o vimos no meio do nevoeiro já nada havia a fazer, máquinas a toda a força à ré e rezar para que o outro não se parta ao meio, foi muita sorte que viesse vazio e a meia força, quando não sabe-se lá se estaria aqui a contar-te a história...". Já a ouvi dúzias de vezes, já escrevi sobre ela mas isso agora é de somenos, eu apenas estou intrigado e suspenso da decisão dos tribunais, não que ganhe alguma coisa com a douta decisão, mas se me a dão, venha ela para acabar com o suspense...

E a sentença sai quando? Ora cá está uma boa questão, velha de anos é certo, mas que ponho sempre nem que seja para ancorar a dúvida que a ribeira vai cheia e o casco não anda. "Aquilo não tem nada que saber, a culpa não é de ninguém!". Ora, aí é que deve estar a indecisão do meritíssimo juiz que a esta hora já se perguntou mais de uma dúzia de vezes porque é que não escolheu outra profissão. todas menos marinheiro ou piloto que ainda se veria de novo enredado nesta épica história do rebocador que ia atravessando o catamarã da Transtejo. Como assim de ninguém? "A gente não viu e quando percebemos era tarde!". Não era tarde, era de noite e bem escura rezam os relatos. Alguém haveria de estar de olho no radar, não era? É para isso que fizeram os radares. "Era eu, era eu, mas não o vi. E na ponte do outro haveria de estar também um par de olhos a olhar para o ecran, e estava que o outro mestre é homem de confiança e jurou-me pelas alminhas que estava, mas o que é certo é que também não me viram... Estava escuro muito escuro!". Ninguém quer aceitar a culpa, é disso que se fazem as disputas (e muitos outros insultos) depois dos acidentes, sendo que os do mar têm um sabor mais salgado por via disso mesmo e de uma solidariedade de almas que raramente se encontra noutras demandas. "Já fui ouvido uma porrada de vezes, se soubesses os dias que já perdi por causa disto, as companhias já acordaram que cada um ficava com os seus estragos, mas o Porto de Lisboa não quer dar o assunto por encerrado". Caso será para dizer que águas passadas não movem moinhos, mas alguém de bom senso me virá recordar que não falamos de barcos à vela, mas sim de rebocadores e de catamarãs, coisas que só servem para distrair o leitor do essencial, do homem que diz não teve culpa nenhuma mas que não a quer nos ombros do outro, que a vida custa a todos e esta vida de marinheiro está a dar cabo de mim e do resto da defesa de uma das partes...

"Eu já disse ao juiz: Um tipo que vê bem de dia, também vê bem de noite!". Acho isto extraordinário, alguém devia avisar as companhias de seguros deste pequeno detalhe fisico. Mas onde queres chegar com isso? "É que é mesmo assim, Pedro! Um tipo que vê bem de dia também vê bem de noite!". Venha mais uma cerveja que isto está para durar... "Só o escuro é que atrapalha, o resto é igual!". Venha mais uma cerveja para me ajudar a digerir os pensamentos.

5 comentários:

Anónimo disse...

Que escrita magistral...

Eduardo disse...

Grande reflexão..

Anónimo disse...

apaixonante. cheguei hoje ao seu blog (que desconhecia completamente) e tou a devorá-lo como se o Acácio estivesse atrás de mim...
já o coloquei nos meus favoritos e serei presença constante... tou deliciada!

Pedro Aniceto disse...

Obrigado, Rosa. Vou-me lembrar desta e de outras linhas que me têm sido simpaticamente endereçadas, no próximo "bloqueio" de imaginação.

Anónimo disse...

Pedro, merecias um Nobel da Literatura!!!!