14 março 2006

O Barquinho

Republicação de Crónica de 12/2/2004

"Pedro você tem de me ajudar, estou francamente aflita". Claro que escrever esta frase não espelha o estado de pânico com que a voz era decorada, mas foi isto que ouvi no alta voz do telefone. "Tenho um barquinho aceso no tablier do carro e estou numa fila de trânsito". Recomendei calma e consegui com isso ganhar uns preciosos segundos para tentar descodificar a frase. Um barquinho? Mas o que diabo é que faz um barquinho no tablier do seu carro?! Tentei amenizar a questão, mas quem estava a ficar atrapalhado era eu.

Amenizei demasiado, talvez seja desta chuva persistente que poderá estar a chegar-lhe às portas, o pré aviso do universal dilúvio, sei lá. "É um barquinho vermelho!" Vermelho ainda por cima, obrigado pela indicação, estou quase quase a chegar lá. "DOIS! São dois barquinhos!" Oh Diabo! Dois? "Acabou de acender o segundo!". Se com um barquinho ainda achei que não era nada de sério, com dois achei melhor mandar encostar na berma. Ainda suspirei várias vezes, perguntando a mim mesmo porque estranha razão as mulheres decidem desligar as máquinas de lavar roupa se ouvirem um botão de camisa a bater no tambor mas não páram o carro a não ser que este esteja a arder, mas não vale o esforço, há certas coisas que serão sempre como são. "Pronto, já parei, VAI TU OH FILHO DA PUTA! E agora?", se não foi assim foi parecido, também nestas coisas elas serão sempre como são.

Agora vamos tentar raciocinar os dois e tentar saber o que são os barcos de que me fala. "Desculpe Pedro, este filho da puta não era você." Que alívio, não convém mesmo nada estar a insultar quem nos vai ajudar, principalmente quando o problema envolve barquinhos no tablier de um Clio. E depois vieram os pormenores, aqueles que só elas conseguem juntar a uma história e que nos faz arrepelar os cabelos e pensar na frase cinematográfica do "Just the facts, mom! Just the facts!". Quantas curvas fizeram antes do problema acontecer, o facto de terem aberto a tampa da bagageira para guardar o saco das compras de supermercado, o facto de terem pisado o pedal da embraiagem no momento do acendimento da luz, sei lá, uma autêntica fila indiana de pormenores e detalhes que só elas sabem adicionar a uma história, tudo coisas que não interessam à resolução do problema, mas não vale o esforço, há certas coisas que são como são.

"VAI TU MEU CABRÃO DE MERDA!" Há nestes diálogos imprevistos qualquer coisa que me escapa e daí talvez não. Indago do correcto estacionamento na berma. "Talvez esteja um bocadinho saído". Estar "um bocadinho saído" tem uma tradução instantânea na minha alma de macho: Deve estar no meio da estrada. E estava. "Bah!, Três rodas no alcatrão, o que é que eles querem para me buzinar desta maneira?" Nada minha querida, nada. Voltemos ao barquinho. Roda a chave para a primeira posição. Ouço o motor de arranque a trabalhar. Eu disse a primeira posição, não disse a terceira. "Não me grite, Pedro, não me grite". Não estou a gritar estou a falar, não me apetece gritar, estou demasiado cansado da minha vida para lhe estar a gritar, é mesmo só uma sugestão para tentar perceber o que acontece. Vamos lá, com imensa calma rodar a chave para a primeira posição. O que vê? "Não vejo nada, tenho os vidros todos embaciados...". Ainda há esperança para a raça humana? Para esta espécie pelo menos? Ficaram extintos os dinossauros por muito menos, ao que consta, a estupidez humana também tem os seus limites, ou pelo menos eu atinjo-os com relativa facilidade. Se experimentar não olhar através dos vidros embaciados, o que é que vê? "O barquinho está aceso...". Há coisas que são como são.

Não há barquinhos desenhados em tabliers de Clio, muito menos barcos que se acendam , isso são apenas os cacilheiros em dia de festa e hoje a festa está estragada, pelo menos para mim a julgar pelo que chove e para si, a julgar pela adiantada hora, se a casa conseguir chegar virão os filhos, o cão, a roupa de amanhã e a hora a que o marido não vai chegar, porque partiu uma vez e ainda hoje se espera por ele, pelo menos nos registos dos tribunais de família. Ficou o Clio mais os seus barquinhos, e uma angústia que mais parece o Tejo em dia de borrasca. E uma lista telefónica de nomes de amigos comuns que herdaram o papel de consultores para as horas complicadas ou para as aflições em que aqueles que foram arquivados na categoria "Mecânicos" saltam que nem molas de amortecedor. Há coisas que são como são.

Inspiro uma golfada de SG na secreta e adiada esperança de obter um milagre que me explique o enigma do barquinho. Penso na tua figura de fim de dia, no corpo que já não é o mesmo mas que ainda faz voltar muitas cabeças, na enormidade de dias que já passaram sobre a época em que um batalhão de machos entupiria a 25 de Abril apenas para serem prestáveis e por minutos fazerem o papel que sempre na vida evitaram, o de serem galãs por vinte minutos, ou menos caso algo de extraordinário se precipitasse. Mariana há quanto tempo não muda o óleo? "Oh Pedro faz tempo!". Calo-me. Era inevitável e não evito um desvio soez e torpe do meu raciocínio. Talvez a mente dela não esteja tão prevertida como a minha. Talvez. "Este óleo não mudo faz tempo!", quase leio o sorriso na ponta da frase, o "este" martelado letra a letra, a fina brejereice que nunca usaste. O tempo passa por nós e nós tivemos de optar, não foi Mariana? Levo a mão ao pára brisas para ajudar a desembaciar, mas não é no vidro é na alma. Há coisas que são como são.

1 comentário:

Anónimo disse...

Deixa lá. O meu amigo Toi, faz muitos anos, tirou a carta e comprou uma Diane em segunda mão, belissima para a pesca e outras aventuras que me envergonho de contar. Certa quarta feira, na folga do café do pai onde trabalhava, saiu á cena mais uma pescaria, e foi recolher o pessoal. Num largo e á espera do último antes da partida, olhou para o chafariz no meio do largo e disse: "A água. Tenho que ver se o carro tem água". Todo o pessoal que com ele estava, desencartados e leigos em mecanicices, se disponibilizou para o ajudar. A briu o "capot", desenroscou o "bujão" e constatou que não tinha água. E atestou de água. Alguns 10 litros. Feito o serviço lá foram. Mas custaram a vir. A água deu-se mal com o óleo e á chegada á cidade a pobre Diane entregou a alma ao criador. O excesso de zelo pode ser fatal como a falta dele...