"Senhoras e Senhores! Meniiiiinos e meniiiiiinas! É chegarem-se! É chegarem-se! Por apenas um euro, um euro apenas, terão oportunidade de vislumbrar um grande momento, a hipótese um em milhões, a roda da fortuna de que todos nós somos um raio, o Grande Arquitecto Universal a riscar-nos projectos na alma! Senhoras e Senhores! Meninos e meninas! O grande domador do improvável, o trapezista do impossível. Senhoras e Senhores, eis o rato Isaías!"
Claro que o anúncio acima não aconteceu. Claro que foi a minha delirante imaginação que inventou, ainda que mentalmente, um compére de vernelhíssima asa de grilo e negra cartola, Mas que o espectáculo merecia, lá isso não é menos verdade. Não havia chapiteau, mas uma espessa sombra providenciada pela copa das árvores de um largo da Ericeira. Um magote de gente suspensa da palavra do eleito compére, e eu de fora sem saber das razões de tal ôba ôba...
Aproximo-me. Afasto discretamente entre filas de espectadores atentos, velhos reumáticos e crianças de traje domingueiro. No centro do hexágono três criaturas vendem bilhetes numerados e exibem aos boaquiabertos clientes os prémios em liça. Tartes, Pães de Ló, Tortas, Direitas, Rochas, Raivas, Areias e Suspiros gigantes. Suspiro. Suspiro de tanto doce e de inquietação. Cada série tinha como cabeça de cartaz um espectacular bolo acompanhado de uma garrafa de Amêndoa Amarga. Amarga a sorte de quem lhe cai do céu o azar divino. Um cartaz manuscrito, atado numa das baias delimitadores da função cumpre a sua: "Para as obras da Igreja". Não diz qual, não interessa e para o caso tanto faz como diria Régio. Percebo. Percebo que por um euro posso levar para casa um enorme bolo e uma garrafa de Amêndoa Amarga. Deve ser um sorteio, só pode ser um sorteio, não preciso da Luz Divina para chegar tão longe. Nem posso sequer chegar-me mais longe, estou praticamente em cima dos vendedores.
Aprecio o cenário, agora que a multidão se agita e se comprime. Pinga-me nos dedos esquecido o sabor de Frutos do Bosque do gelado que acabei de comprar na Mar Azul que é, mal comparado e que me perdoe o próprio se ainda for vivo, o Santini da Ericeira... Engulo o que resta do barquilho. "É o último! É o último! É o dois!!!". Não tenho preferências numéricas. Estou imune a preferências deste tipo desde que um supremo capricho da sorte de estudante me bafejou o enorme numerador da escolar secretaria com o sessenta e nove. Se certo é que não chumbei debaixo de tão significativa influência nunca o mesmo me deu alegrias por aí além...
O mecanismo do sorteio podia ser simples. Um saco com bolas. Um saco com canhotos das senhas. Um mental anjinho ou uma loura deslavada cumpririam a preceito a piramidal tarefa de eleger o novo proprietário do bolo e da amêndoa. Não, não íamos ser assim tão óbvios! Somos portugueses e temos de dar azo à criativa veia que deu novos mundos ao mundo...
Quem sabe se a Comissão Fabriqueira não acredita em anjos ou louras deslavadas. A verdade é que é um rato que vai decidir o destino da glucose. Trata-se de um mecanismo complexo. Uma enorme mesa que mais parece uma Praça de Touros à escala. A rodear o conjunto estão vinte e seis pequenas arcadas devidamente numeradas ao redor do conjunto. No centro está o rato. Está, não! Imagina-se-lhe a presença porque no centro está uma caixa de madeira com uma pequena pega que permitirá libertar o oprimido roedor.
Adivinho o resto. O rato escolherá um buraco e o número do buraco onde entrar ditará a sorte do vencedor. Tenho pressa e o número dois continua por vender. Aceno à vendedora e estendo-lhe o euro. "É para as obras da Igreja", sorri-me, como se a explicação fosse necessária para alguma coisa. Bom, vamos a isto grita o manobrador da caixa do rato. Delicioso detalhe deste personagem que numa tentativa de demonstrar a completa imparcialidade do rato, roda a caixa para a esquerda e para a direita numa tentativa quem sabe de baralhar o rato ou mesmo os espectadores. Ao meu lado alguém sussurra que pode muito bem dar-se o caso de haver por debaixo da mesa alguém com um pedaço de queijo a acenar ao roedor para que o bolo saia à casa. O bolo é exibido qual prova de crime e passa pela frente dos narizes de dezenas de espectadores, uns habilitados outros não. "Deus queira que não me saia! Eu até sou diabética" diz uma gordinha à vista das quatro reluzentes e vitrificadas rodelas de ananaz. Engana-me que eu gosto...
Entontecido o rato, brame a multidão pela abertura da caixa. Também eu me deixo levar pelo entusiasmo e acendo um cigarro. O buraco número dois está demasiado longe de mim para que possa em termos de fé torcer pelo rato ou pelas obras da igreja. Levanta-se a tampa e eu imagino um desfecho rápido para o assunto. Uma correria, um buraco para se esconder e já está... É um hamster simpático de pelo lustroso. Castanho. IMÓVEL! Não pode ser!, declino mentalmente. Então o gajo não se mexe? És um rato ou és um rato? Imóvel! Absolutamente imóvel! Esfrega o focinho com as patas como fazem os hamsters desde que o mundo é mundo e ainda virá alguém que me diga qual nasceu primeiro se a galinha se o hamster, deve ter sido este último porque com galinhas este sistema de sorteio obrigaria a buracos muito maiores.
A multidão agita-se de novo, gritam pelo seu número como se o rato viesse a cogitar "Ai a gaja quer o dezanove? Pois para aí é que não vou!". Descubro em segundos após uma rápida busca pelas sinapses que o Scolari já usou este método. Alguém sugere que se dê uma palmada na mesa no que é imediatamente contrariado pela metade do grupo do lado contrário pois que toda a gente sabe que os bichos fogem do ruído e que isso iria claramente beneficiar a dezena dos opostos buracos. Que rápidos que são estes portugueses a encontrar falhas nos sistemas...
Foco-me mentalmente no centro da mesa. O rato lá está sossegado quem sabe cogitando um buraco bom no qual se esconda, a mim, com excepção do dois qualquer me serve que lhe sirva. Decide-te rato! Da tua decisão podem depender umas asas novas para o Anjo Gabriel ou dois centímetros de talha dourada para o andor do Senhor dos Passos. "Isto nunca sucedeu, e já usámos este rato nas festas de há dois anos". Estou quase a pedir o número de telefone ao tratador, este rato é uma estrela local e quem sabe o que a Endemol poderia por ele fazer com dois dedos de produção. O mais certo é que acabada a fama se quisesse vir a suicidar, despenhando-se sem pára-quedas do alto de uma trave de armazém, mas nessa altura, depois de acabada a fama, quem é que quer saber de um simples rato?
Começo a sentir alguma simpatia pelo bicho. São notáveis os pontos de contacto da figura de um rato imóvel no centro de um arena de escolhas e as nossas próprias vidas...
Faz-se silêncio. O rato mexeu-se. Calma e delicadamente, quase passando despercebido ou quem sabe empurrado por vários pares de olhos parou à porta número nove. Entrou. Debaixo de uma chuva de aplausos do vencedor e de muito pouco católicos impropérios dos outros 22 apostadores. Não o insultei, fiquei apenas a pensar na simpatia que desde hoje nutro pelo decision maker. Afasto-me e desejo mentalmente à igreja a melhor sorte do mundo com a escolha do empreiteiro. Ainda ao virar da esquina quase juro ter ouvido alguém anunciar:
"Senhoras e Senhores! Meniiiiinos e meniiiiiinas! É chegarem-se! É chegarem-se! Por apenas um euro, um euro apenas, terão oportunidade de vislumbrar um grande momento, a hipótese um em milhões, a roda da fortuna de que todos nós somos um raio, o Grande Arquitecto Universal a riscar-nos projectos na alma! Senhoras e Senhores! Meninos e meninas! O grande domador do improvável, o trapezista do impossível. Senhoras e Senhores, eis o rato Isaías!"
Republicação de crónica de 22 de Abril de 2004
Claro que o anúncio acima não aconteceu. Claro que foi a minha delirante imaginação que inventou, ainda que mentalmente, um compére de vernelhíssima asa de grilo e negra cartola, Mas que o espectáculo merecia, lá isso não é menos verdade. Não havia chapiteau, mas uma espessa sombra providenciada pela copa das árvores de um largo da Ericeira. Um magote de gente suspensa da palavra do eleito compére, e eu de fora sem saber das razões de tal ôba ôba...
Aproximo-me. Afasto discretamente entre filas de espectadores atentos, velhos reumáticos e crianças de traje domingueiro. No centro do hexágono três criaturas vendem bilhetes numerados e exibem aos boaquiabertos clientes os prémios em liça. Tartes, Pães de Ló, Tortas, Direitas, Rochas, Raivas, Areias e Suspiros gigantes. Suspiro. Suspiro de tanto doce e de inquietação. Cada série tinha como cabeça de cartaz um espectacular bolo acompanhado de uma garrafa de Amêndoa Amarga. Amarga a sorte de quem lhe cai do céu o azar divino. Um cartaz manuscrito, atado numa das baias delimitadores da função cumpre a sua: "Para as obras da Igreja". Não diz qual, não interessa e para o caso tanto faz como diria Régio. Percebo. Percebo que por um euro posso levar para casa um enorme bolo e uma garrafa de Amêndoa Amarga. Deve ser um sorteio, só pode ser um sorteio, não preciso da Luz Divina para chegar tão longe. Nem posso sequer chegar-me mais longe, estou praticamente em cima dos vendedores.
Aprecio o cenário, agora que a multidão se agita e se comprime. Pinga-me nos dedos esquecido o sabor de Frutos do Bosque do gelado que acabei de comprar na Mar Azul que é, mal comparado e que me perdoe o próprio se ainda for vivo, o Santini da Ericeira... Engulo o que resta do barquilho. "É o último! É o último! É o dois!!!". Não tenho preferências numéricas. Estou imune a preferências deste tipo desde que um supremo capricho da sorte de estudante me bafejou o enorme numerador da escolar secretaria com o sessenta e nove. Se certo é que não chumbei debaixo de tão significativa influência nunca o mesmo me deu alegrias por aí além...
O mecanismo do sorteio podia ser simples. Um saco com bolas. Um saco com canhotos das senhas. Um mental anjinho ou uma loura deslavada cumpririam a preceito a piramidal tarefa de eleger o novo proprietário do bolo e da amêndoa. Não, não íamos ser assim tão óbvios! Somos portugueses e temos de dar azo à criativa veia que deu novos mundos ao mundo...
Quem sabe se a Comissão Fabriqueira não acredita em anjos ou louras deslavadas. A verdade é que é um rato que vai decidir o destino da glucose. Trata-se de um mecanismo complexo. Uma enorme mesa que mais parece uma Praça de Touros à escala. A rodear o conjunto estão vinte e seis pequenas arcadas devidamente numeradas ao redor do conjunto. No centro está o rato. Está, não! Imagina-se-lhe a presença porque no centro está uma caixa de madeira com uma pequena pega que permitirá libertar o oprimido roedor.
Adivinho o resto. O rato escolherá um buraco e o número do buraco onde entrar ditará a sorte do vencedor. Tenho pressa e o número dois continua por vender. Aceno à vendedora e estendo-lhe o euro. "É para as obras da Igreja", sorri-me, como se a explicação fosse necessária para alguma coisa. Bom, vamos a isto grita o manobrador da caixa do rato. Delicioso detalhe deste personagem que numa tentativa de demonstrar a completa imparcialidade do rato, roda a caixa para a esquerda e para a direita numa tentativa quem sabe de baralhar o rato ou mesmo os espectadores. Ao meu lado alguém sussurra que pode muito bem dar-se o caso de haver por debaixo da mesa alguém com um pedaço de queijo a acenar ao roedor para que o bolo saia à casa. O bolo é exibido qual prova de crime e passa pela frente dos narizes de dezenas de espectadores, uns habilitados outros não. "Deus queira que não me saia! Eu até sou diabética" diz uma gordinha à vista das quatro reluzentes e vitrificadas rodelas de ananaz. Engana-me que eu gosto...
Entontecido o rato, brame a multidão pela abertura da caixa. Também eu me deixo levar pelo entusiasmo e acendo um cigarro. O buraco número dois está demasiado longe de mim para que possa em termos de fé torcer pelo rato ou pelas obras da igreja. Levanta-se a tampa e eu imagino um desfecho rápido para o assunto. Uma correria, um buraco para se esconder e já está... É um hamster simpático de pelo lustroso. Castanho. IMÓVEL! Não pode ser!, declino mentalmente. Então o gajo não se mexe? És um rato ou és um rato? Imóvel! Absolutamente imóvel! Esfrega o focinho com as patas como fazem os hamsters desde que o mundo é mundo e ainda virá alguém que me diga qual nasceu primeiro se a galinha se o hamster, deve ter sido este último porque com galinhas este sistema de sorteio obrigaria a buracos muito maiores.
A multidão agita-se de novo, gritam pelo seu número como se o rato viesse a cogitar "Ai a gaja quer o dezanove? Pois para aí é que não vou!". Descubro em segundos após uma rápida busca pelas sinapses que o Scolari já usou este método. Alguém sugere que se dê uma palmada na mesa no que é imediatamente contrariado pela metade do grupo do lado contrário pois que toda a gente sabe que os bichos fogem do ruído e que isso iria claramente beneficiar a dezena dos opostos buracos. Que rápidos que são estes portugueses a encontrar falhas nos sistemas...
Foco-me mentalmente no centro da mesa. O rato lá está sossegado quem sabe cogitando um buraco bom no qual se esconda, a mim, com excepção do dois qualquer me serve que lhe sirva. Decide-te rato! Da tua decisão podem depender umas asas novas para o Anjo Gabriel ou dois centímetros de talha dourada para o andor do Senhor dos Passos. "Isto nunca sucedeu, e já usámos este rato nas festas de há dois anos". Estou quase a pedir o número de telefone ao tratador, este rato é uma estrela local e quem sabe o que a Endemol poderia por ele fazer com dois dedos de produção. O mais certo é que acabada a fama se quisesse vir a suicidar, despenhando-se sem pára-quedas do alto de uma trave de armazém, mas nessa altura, depois de acabada a fama, quem é que quer saber de um simples rato?
Começo a sentir alguma simpatia pelo bicho. São notáveis os pontos de contacto da figura de um rato imóvel no centro de um arena de escolhas e as nossas próprias vidas...
Faz-se silêncio. O rato mexeu-se. Calma e delicadamente, quase passando despercebido ou quem sabe empurrado por vários pares de olhos parou à porta número nove. Entrou. Debaixo de uma chuva de aplausos do vencedor e de muito pouco católicos impropérios dos outros 22 apostadores. Não o insultei, fiquei apenas a pensar na simpatia que desde hoje nutro pelo decision maker. Afasto-me e desejo mentalmente à igreja a melhor sorte do mundo com a escolha do empreiteiro. Ainda ao virar da esquina quase juro ter ouvido alguém anunciar:
"Senhoras e Senhores! Meniiiiinos e meniiiiiinas! É chegarem-se! É chegarem-se! Por apenas um euro, um euro apenas, terão oportunidade de vislumbrar um grande momento, a hipótese um em milhões, a roda da fortuna de que todos nós somos um raio, o Grande Arquitecto Universal a riscar-nos projectos na alma! Senhoras e Senhores! Meninos e meninas! O grande domador do improvável, o trapezista do impossível. Senhoras e Senhores, eis o rato Isaías!"
Republicação de crónica de 22 de Abril de 2004
10 comentários:
O blog é que faz anos e nós é que recebemos uma prenda. Belo texto.
Propaganda maçónica ?!!!
Com essa do grande arquitecto, parece mesmo e a analogia rato = povo também está lá, percebe-se.
A simbologia do 9 é comunicacional, perto do número da besta
Aqui numa paróquia vizinha fez-se algo ainda mais espetacular: Um campo de futebol dividido em pequenas quadrículas, cada uma com um número atribuido, numa matriz à parte. Um novilho. Onde o novilho deixar a primeira bosta é o vencedor.
Deliciei-me, mais uma vez (e não foi com o bolo).
Excelente texto...
A∴G∴D∴G∴A∴D∴U∴
hehehehehe
Para mim será sempre um completo mistério que os leitores gostem de textos que eu não considero serem bons, e que não liguem nenhuma a todos os que eu realmente aprecio...
Deixe lá Pedro! São assim os grandes escritores.
Excelente história deste rato de sacristia (sim, que eu não nasci ontem). E, mais uma vez, conseguiu colocar-me no meio de um "sururu" dramático/festivo. Para mim, vulgar leitor, é o mais importante em qualquer narrativa.
Parabéns e obrigado.
É o estado de espírito e a forma de estar. Dispor-se a parar para ver, a seguir olhar, observar e analisar.
Mais difícil é transmitir e conseguir colocar-nos nos lugares com a simplicidade das emoções. É viver! Faça o favor de se manter atento.
Deixe-se de histórias, Pedro. Você SABE que o texto é muito bom. Excelente, mesmo. Ficaria cliente da casa, se não o fosse já. Parabéns.
Ana
P.S: Não garanto que não lho venha roubar, um dia destes.
É por estas e por outras que continuas a ser "de Leitura Obrigatória".
Beijos
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