15 dezembro 2007

High as a kite by then

Encontrei-o sentado no passeio da rua já dentro dos muretes do parque de estacionamento, indiferente ao vento e ao frio. Ele há certas coisas a que um viandante como eu nunca ficará indiferente como por exemplo homens amachucados caídos nos lancis dos passeios das nossas vidas. Conheço-o de outras paragens, de outras lutas, deixei-o cair, deixámo-lo cair, ele foi-se rapidamente (demasiado rapidamente) deixando cair, ainda o agarrei, ainda o agarrámos, mas é complicado segurar quem se quer deixar ir, e foi, o apelo do sangue guloso pela heroína foi mais forte que os alertas de quem o quis segurar. Conversa fria, de circunstância até me reconhecer. "Uma moedinha, não tens por aí?". Não tenho, nunca tive, nunca comprei a minha própria consciência com dinheiro, moedinhas ainda para mais. Olha, tens comido? "Pergunta parva, pá, eu preciso é de pó, de pó, topas?". Topo. Mas quanto a isso nada há a fazer pela minha parte, estás farto de o saber. Já não te via há tempos, onde anda a tua mãe? "Está no Algarve, man, está no Algarve..." E queimaste mais um tratamento, disse-me ela da última vez que a vi. "Pois foi, man..." Vais lá baixo ter com ela pelo Natal? "Tás parvo, não tenho dinheiro, man..." Dei comigo a pensar que já vi este filme por várias vezes, não é a primeira vez que me deixei condoer por episódios semelhantes e já vi bilhetes de comboio a serem trocados por um caldo numa qualquer esquina. "Ajudas-me?" Para o pó nem penses nisso, mas ponho-te no Algarve em três tempos, queres ir? "Não, man, eu quero é pó, topas?". Topo.

2 comentários:

Anónimo disse...

A realidade é esta. Pura, cruel, incompreensível.
E pomo-nos a pensar porque é que o caminho que eles escolheram foi este?
Com tantas coisas, para nós, boas que a vida tem por aí à disposição foram logo escolher o da dependência da merda.
Porquê?
Desde que me conheço já vi alguns optarem por viajar desta maneira. Alguns foram meus amigos e admirava-os pelo que faziam outros admirava-os apenas pelo que faziam e todos, mas todos, apenas conseguiram com que eu continue a admira-los pelo que fizeram.
Que merda, man.

Parabéns pelo teu blog, mais uma vez, e um grande abraço.

Pedro Aniceto disse...

Conheci muitos. Uns já cá não estão, outros foram ao fundo e voltaram. Não voltaram iguais, um tipo nunca volta igual das descidas aos infernos. Mas admiro-os pela coragem física e mental. A verdade é que viemos todos da mesma fornada, cumprimos muitos caminhos lado a lado até às decisões. Ainda hoje é para mim um mistério indecifrável (ou pelo menos eu já desisti) de tentar perceber porque é que alguns de nós conseguimos dizer "não" quando era tão mais fácil a inversa.