Não a conheço, ela não me conhece, há todo um alinhamento planetário que nos colocou no mesmo local e à mesma hora num contexto estritamente profissional. É tudo o que precisam de saber sobre este encontro. Ela é a enfermeira, eu sou o paciente. Ela é mulher, eu sou homem e não é preciso nenhum compêndio científico para demonstrar que há todo um imaginário masculino sobre enfermeiras mesmo que estas não sejam louras, não tenham um ar lascivo e não se chamem Ingrid. Já todos nós percebemos onde quero chegar. Qualquer homem saberá do que falo, qualquer enfermeira odiará o estereótipo. É dos livros, dir-se-á, quando na verdade é muito mais dos filmes. Ela tem por missão momentânea retirar-me uns centímetros cúbicos de sangue, colher-me sangue dirão os mais puristas, está a preparar-se para isso, garrote, tubos, seringa, segue-se uma análise que alguém há-de interpretar e outralguém assinar. Mas primeiro precisamos do sangue. E do que lhe está nas veias de paciente. De sangue. Isso.
Quem analisa primeiro quem, sou eu, mais folgado de trabalho, estou ali, sentadinho, cómodo e sem mais nada para fazer do que dar o sangue ao manifesto. Ela é extremamente bonita. Muito, muito bonita mesmo. Morena, o uniforme branco a fazer sobressair uma pele bem bronzeada. Talvez não seja assim, talvez eu esteja aqui ou ali a ser influenciado pelo tal imaginário masculino que potencia uma torrente de pensamentos menos condignos de serem escritos de forma romanceada sem se descambar num relato de outra estirpe e classificação cinematográfica. Talvez. Mas também se costuma dizer que um cavalheiro não conta nunca estas coisas e depois, vai na volta, é o que se sabe e o que se sabe é sempre muitíssimo mais do que aquilo que ninguém relata.
Ela interrompe-me os devaneios mentais de imaginação mais ousada. Quer saber se tenho preferência no braço a ser picado. Não faço questão. Assim como assim não estou a prestar nenhuma atenção ao que ela está a fazer, recordo, uma colheita de sangue para uma análise, não vá alguém ter-se perdido na viagem. Escolho o direito, não por ser o direito, apenas porque lhe dará mais jeito. Estamos em público, há pelo menos quatro mirones que se estão a deliciar com esta cena e um deles há-de piscar-me o olho, o que, vindo de um homem, tomo como sinal de encorajamento ou de solidariedade masculina perante a adversidade. Ou não. Nunca saberei.
Ela, profissional e atenciosa, avisa-me que vai espetar a agulha. Não sei que espécie de lei não escrita faz com que a maioria das enfermeiras que conheço faça questão de informar de que nos vai magoar. Devem ensinar isto nos Cursos de Enfermagem, há quem tire prazer da dor, uns sofrendo-a, outros ministrando-a, desde que o Mundo é Mundo que assim é, eu limito-me a esperar a picada e a sentir a agulha a penetrar-me no corpo. Ela é extremamente bonita e isto é só por si um anestésico.
Há coisas más para acontecer, como alguém me disse um dia, estamos sempre a ser surpreendidos por coisas de que estávamos à espera, não era o caso, a agulha espetada era apenas meio caminho para que o objectivo fosse atingido. Mas havia coisas más à espera e eu esperava uma singela seringa, coisa que não sucedeu fruto da modernização hospitalar; deixai-me explicar, agora o sangue é recolhido para uns tubos de vácuo que são adaptados à agulha que o paciente tem espetada no braço, devidamente acondicionada dentro da veia do meu braço direito e em teoria tudo funciona rapidamente e sem sobressaltos. Com os outros. Sempre com os outros.
Há qualquer coisa a correr mal. Dou por isso pela intensa actividade junto da veia do meu braço direito, ela está nervosa, há qualquer coisa mecânica que não funciona como deveria funcionar, o tubo não abre, não se dá a sucção, o sangue não corre, isto é, para dentro do tubo, em vez disso já aflora junto à agulha espetada na veia, agulha que começa a incomodar-me com tanta agitação de tentativas de funcionamento deste novo sistema. Eu já percebi que está a correr mal, a não correr de todo, os mirones agitam-se e esticam o pescoço para melhor apreciar o espectáculo. Ela enerva-se, diz mal dos tubos, imagino o que não dirá, deve ser algo mais violento. Informa-me de que algo está a correr mal. Eu já teria dado por isso mais cedo se ela não fosse tão atraente e devolvo um "deixe lá" muito pouco convicto.
Nova investida no sistema, vã tentativa, o raio do tubo não abre, nesta fase ela está decidida a usar a força mas nem isso demove os plásticos envolvidos e dá-se o caso de, neste momento, a profissional estar debruçada sobre mim numa pose muito pouco ortodoxa que dificilmente será ensinada nos Cursos de Enfermagem e que, ainda e apesar dos fracos olhos que Deus me deu (rai's parta!) eu estar à beira do aumento brutal do ritmo cardíaco, coisa que sabe-se lá não virá a perturbar o resultado final das minhas análises, por via do decote do uniforme, mas sobretudo devido à falta de lingerie dentro do mesmo. Pronto. Era isto. A minha análise nunca mais será a mesma. As coisas são como são, e as dela, valha-me Deus, eram aparentemente bastante saudáveis. Vitamina D com fartura. Nem uma marca no bronzeado, não está nada mal para ceguinho... Reparem como são as coisas, desígnios insondáveis, como que por magia eu deixo de estar preocupado com o que quer que se relacione com seringas, tubos e sangue... Coisas.
Sou informado de que vou ser picado de novo, não sem antes me ser retirada a agulha cujo sistema não funcionou, tudo isto é presenciado por mim em sofrimento misto de prazer, a posição mantém-se, eu por mim já pensei "tenho quatro litros e meio de sangue, esteja à vontade, leve o tempo todo que for necessário...", claro que só pensei, não lho disse, queira o leitor notar que não deverá dizer este tipo de coisas a pessoas, por mais atraentes que sejam, que estejam debruçadas sobre si, sem lingerie visível até onde a sua imaginação possa alcançar, mas que tenham objectos metálicos pontiagudos espetados no seu corpo. Estão avisados, não abusem da vossa sorte.
Disse lá atrás que um cavalheiro nunca conta. E estive dias a fio a pensar se o deveria fazer.
Tinha de o fazer.
Está-nos no sangue. Está-me no sangue.
23 setembro 2012
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5 comentários:
O que mais me "revolta" é que as únicas fotos partilhadas pelo twitter se cingiam à mão do paciente com uns tubos espetados...
Sim, ha uma lei...temos sempre de informar o utente do que vamos fazer...
É verdade que a enfermeira loira bla bla bla, é estereótipo odiado por nos, mulheres, mas ate consigo entender o pensamento de voces, homens xD
Parabéns, sou quase quase enfermeira e, gostei bastante...
Ah... E sempre que me fardar vou lembrar-me de "coisas" e usar algo alem do uniforme ahah
Ai o que eu já me ri com isto :D
eu acho este texto uma petetice mas devo ser eu, que não sonho com esse estereotipo...
O autor da "patetice" agradece-lhe ainda assim a visita e a opinião.
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