Quando hoje, Pedro adentrou as portas da Assembleia de voto a que eu presidia, pressenti o sarilho iminente. Lia-se isso, aliás, no semblante de todos os membros da mesa. Mas contrariamente ao esperado, não houve qualquer perturbação. Pedro incorporou-se na fila de eleitores e quando chegou a sua vez, naquele seu jeito meio arrojado, meio desprovido de qualquer outra coisa que se assemelhe a higiene, ou cuidados mínimos de aparência, disse-me "Venho votar!" enquanto olhava fixamente a urna que era a bem dizer a maior barreira física que entre nós se interpunha. Elaborei mentalmente uma lista de objectos que poderiam virar alvo das suas conhecidas fúrias físicas. A urna, uma cadeira ou uma outra mesa. A tensão cresceu-me nas mãos e eu tentei colocá-lo numa situação em que se não enfurecesse com a recusa que não tardaria, inevitavelmente a surgir.
Na verdade eu desconheço o status eleitoral de Pedro. Na verdade, e friamente, não tenho a mais leve noção disso. E não posso, em boa verdade, como vejo alguns a fazer liminarmente, classificá-lo ou cortar-lhe qualquer direito que possa ter, classificando-o de louco e seguir em frente como se Pedro fosse uma "coisa" da qual se dispõe a nosso bel-prazer. Não posso, não posso e tenho tido algumas dificuldades em fazer perceber isso mesmo a muitas outras pessoas, ditas "normais".
A única solução de compromisso que encontrei naquele instante foi pedir-lhe os documentos. Calmamente, muito calmamente, esperei que Pedro apalpasse por diversas vezes os bolsos enquanto o resto da fila de eleitores dava discretos passos atrás, não sei se por medo se pela definição de uma barreira higiénica. Não perdi nunca de vista os objectos ao seu redor, que a qualquer momento se poderiam tornar armas de arremesso. Mas nada disso foi mais longe do que um receio estéril. Quase envergonhado pela falta, Pedro, baixou os braços, para erguer os ombros num lamento físico e disse-me baixinho, acercando-se mais e mais de mim, "Não tenho... Não tenho carteira...". E dito isto, rodou sobre si mesmo, abandonando a Assembleia Eleitoral como qualquer um de nós faria se na mesma situação.
Pedro regressou umas horas mais tarde. Desta vez sozinho na sala, perante a presença de apenas os membros da Mesa. Respeitosamente acercou-se do centro e repetiu o "Venho votar!" que eu já tinha escutado antes. "Trouxeste os documentos?". Levou a mão ao bolso do casaco nojento que trazia vestido. E de lá extraiu um pequeno bloco de papel usado e agrafado. "Venho aqui deixar o meu voto...". Passou-me para as mãos o bloco de papel e deu-me instruções pormenorizadas sobre como arrancar a folha sem a danificar.
Deu-me o seu "voto". E eu aceitei-o. E fingi metê-lo na urna para lhe ver na cara um rasgado sorriso de satisfação, enquanto acenava um Adeus e desaparecia porta fora debaixo de um céu de chumbo. O louco da aldeia veio votar. Veio trazer a sua contribuição. Expressar a sua vontade. Aquilo que não ocorreu fazer a quarenta e oito vírgula dois por cento dos "normais" da aldeia.
3 comentários:
eu já disse que gostava de ver (e ter) as tuas crónicas publicadas
Eu sei, Luísa, mas isto está a ser tremendamente complicado de gerir (mais por mim do que pelos Editores...) :)
A pasta será passada e em breve o livro publicado:)
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